Conviver com os avós é mais comum nos dias de hoje do que há 50 anos atrás. Não conheci o meu avô materno, mas tive a felicidade de conviver com a avó materna, tive pouco contato com a avó paterna e de, por poucos anos, conviver com o meu avô paterno. Este, uma figura um tanto rara e que vou tentar descrevê-la, cheia de histórias e de ensinamentos.
O “Seu Estacinho”, como era conhecido, era filho do Coronel Estácio do Nascimento e Silva. Eu tenho muita pena de filhos que são castigados ao receber o mesmo nome de pais famosos. Sim, entendo isto como uma condenação, pois aquele menino nunca será ele, sempre será o filho do fulano, por mais brilhante que seja. Os que possuem no sobrenome “júnior”, “filho”, “neto”, geralmente vivem à sombra do nome do pai ou avô. No caso, o meu avô já era adulto e continuava sendo chamado no diminuitivo, o Estácio pequeno, o “Estacinho”, tudo porque seu nome completo era Estácio do Nascimento e Silva Filho. Ele tentou fugir disto, mas todos sabiam quem era o pai dele.
O Cel. Estácio teve seis filhos e duas filhas, tinha várias fazendas e colocava os filhos para administrá-las. Meu avô estudou e completou o ensino médio, que na época era algo raro. Ele sonhava em ser agrônomo e foi até Viçosa, onde estava a melhor faculdade de Agronomia do Brasil, e lá foi aceito. Estava feliz da vida. Nesta época, ele já namorava a minha avó. Formar em Agronomia na década de 1920 era um passaporte para ocupar um cargo importante no país. Com o capital político do seu pai, poderia se tornar um político renomado.
Quem era a minha avó? Uma moça de Tupanciretã, que estava completando seus estudos no Colégio Bom Conselho, em Porto Alegre. Neste Colégio estudavam as meninas das famílias ricas do interior do Estado, e além dos estudos, aprendiam “etiqueta” e a se comportar em ambientes finos. Em outras palavras, eram preparadas para serem esposas de homens ricos e a saberem se comportar em meio à burguesia. Desenvolviam também seus talentos e habilidades. Minha avó tocava muito bem piano e violino. Ela desejava continuar seus estudos.
Pergunto a você leitor: qual o futuro você imagina que a vida reservava para estes dois jovens? Ricos, cultos e com desejos de fazer uma faculdade?
Passamos para o segundo capítulo, quando a vida não segue o roteiro da nossa imaginação e nem os desejos desses jovens. Sabe o que aconteceu? Quando meu avô fez as malas para partir para Minas Gerais, a sua mãe teve uma crise de choro, disse que era muito longe, que iria ficar com muitas saudades e não deixou o filho viajar. A superproteção dos filhos nunca fez bem! A família da minha avó também via como “desnecessário” sua filha continuar os seus estudos, pois ela já estava “formada” no ensino médio. Então, as famílias se reuniram e apressaram o casamento.
Alguém poderá pensar, mas este teu avô era um bolha, porque não bateu pé e enfrentou a mãe. Humm…. a mãe dele quando queria alguma coisa, a coisa acontecia, teve muito negócio e casamento que não ocorreu porque ela não quis. Acho que ela mandava mais do que o Coronel.
Como prêmio, os recém-casados foram enviados para cuidar de uma fazenda, distante 90 km da cidade, onde tinham apenas uma empregada e alguns peões. Um local que não passava ninguém, era um fundo de campo. Minha avó não pode usar suas aulas de etiqueta e nem sequer tocar piano. O som que ela ouvia era do galo cantando e o mugido das vacas. Restou engravidar, logo veio o meu pai e depois a minha tia. Depois do segundo parto, minha avó adoeceu e foi diagnosticada com depressão pós-parto. Eu desconfio que a depressão tenha começado no dia em que ela foi morar naquela fazenda.
Meu avô levou minha avó, os filhos pequenos e uma cuidadora para Porto Alegre para acompanhar o tratamento médico. Ela passou pelos melhores médicos, fez um longo tratamento e não melhorou. Depois de alguns anos foi internada num sanatório em Santa Cruz do Sul. Neste período, faleceu a minha bisavó e o meu avô recebeu parte da herança. O Seu Estacinho colocou os filhos em colégios internos e caiu na gandaia. Nas férias, os filhos eram cuidados pelas tias. Ele foi morar em Buenos Aires com um amigo, onde passavam de festas nos cabarés torrando a herança que havia recebido. Quando a grana estava quase terminando, ele recebeu a herança dos pais da minha avó e novamente destinou esta nova fortuna para os bordéis portenhos. Quando morreu o meu bisavô, ele recebeu a terceira herança. Sabendo que ele iria torrar tudo novamente, a família fez a separação legal dele da minha avó e conseguiu assim deixar uma parte da herança para os filhos. A parte que lhe tocou, ele continuou gastando em festas, voltou ao Brasil, se casou com uma prostituta, inventou alguns negócios que não deram certo até que terminou o dinheiro e aconteceu o esperado. Sem dinheiro, foi morar na nossa casa, sustentado pelo meu pai.
Pergunto novamente a você leitor: estamos agora na década de 1970, qual o sentimento a família deveria ter do Seu Estacinho?
Neste período tive a oportunidade de conviver com ele e ouvir suas histórias. Até então, meu avô era um estranho para mim, mas eu aprendi a gostar e admirá-lo. Uma vez ele me disse que as mulheres gostam de homens que sabem dançar, que tocam um instrumento e que falam de temas esotéricos. Talvez este fosse o seu segredo, pois ele era baixinho, não tinha dotes físicos interessantes, mas sabia tocar violão, era professor de tango e, se lhe dessem ouvidos, ele encantava qualquer um com suas conversas. Mesmo financeiramente quebrado, não perdia a pose, aos seus 80 anos andava pelas ruas de terno de linho branco e uma bengala, e ainda fazia sucesso com a mulherada.
Muitas coisas influenciam nas reviravoltas da vida, mas eu acredito que as frustrações dos sonhos seja uma das mais doloridas, principalmente daqueles que estavam ao alcance e que escaparam. Hoje entendo melhor a trajetória de vida do meu avô, acho que ele canalizou suas frustrações para uma vida de boemia. Já a minha avó, acredito que a sua doença tenha relação com a frustração dos seus sonhos. Por isto, acredito que, ou vivemos os nossos sonhos, ou adoecemos. Sonhos não realizados afetam, com maior ou menor impacto, a saúde do nosso corpo.