Há poucos dias, uma lembrança do Facebook me mostrou uma foto alegre de mais de uma década atrás. Um grupo grande de amigos com quem convivi intensamente durante alguns anos, que a vida separou e hoje vejo apenas pelas redes sociais ou em encontros casuais. Embora o carinho siga presente, a intimidade se foi. Olhando meio melancólica para os nossos rostos sorridentes, percebi o quanto de saudade aquela foto contém não apenas para mim, mas provavelmente para cada um dos que estão ali.
Crianças pequenas que hoje são adultas enfrentaram a perda da despreocupação da infância. Grávidas que então viviam a expectativa pelo novo bebê, estão passando pela desafiadora experiência de serem mães de adolescentes. Um dos amigos morreu, deixando a todos órfãos do seu talento e senso de humor. Um dos casais se separou. Projetos de trabalho queridos tiveram de ser abandonados ou deixaram de existir. Tanto luto em um único retrato. Ainda assim, gosto de saber que cada um seguiu seu caminho e continua exibindo sorrisos, expectativas e amores em novos retratos, com novas pessoas.
Embora faça parte inegável do nosso dia a dia, o luto ainda é tabu. Até mesmo reconhecermos estar passando por um é algo que nos gera estranheza – quando não negação. Quem já criou ou cria filhos sabe que o fim de cada etapa nos faz viver um pequeno luto, por mais alegrias que a etapa seguinte traga. Como demorei algum tempo para entender isso, minhas primeiras “perdas” como mãe foram bem mais intensas do que as mais recentes. De vez em quando ainda deixo escapar uma lágrima pelo período em que lia histórias e cantarolava para fazer a filhota dormir.
A reflexão provocada pela foto em que apareço grávida me lembrou do projeto criado por um grupo de mulheres há alguns anos: Vamos falar sobre o luto?, que está no ar desde janeiro de 2016. Na ocasião, uma das fundadoras, a jornalista Sandra Soares Sibaud, anunciou o trabalho coletivo e voluntário em um post no Facebook dizendo que “a tristeza merece ter seu lugar ao sol – como disse com poesia o Rainer Maria Rilke, ‘quando estamos tristes estamos grávidos de futuro’”.
Desde então, o site é uma das tantas ferramentas que uso para me ajudar a passar pelos inevitáveis lutos que enfrento (não os enfrentamos todos?) no cotidiano. Das perdas mais importantes (como mortes de pessoas e animaizinhos amados e afastamentos de amigos) às mais triviais (o encerramento de um curso interessante, o último capítulo de uma série emocionante ou o fim de um livro excepcional). Admitir e reconhecer o peso e o valor das nossas dores para nós mesmos, sem desmerecê-las ou compará-las com as dores alheias, é um aprendizado contínuo, que nos ajuda a nos curarmos e a também termos mais capacidade de oferecer um colo a quem esteja precisando.
Até a morte do meu pai, quando eu tinha 22 anos recém feitos (assunto recorrente nos meus escritos), eu nunca havia perdido ninguém próximo. Ninguém. Nem um animalzinho de estimação. Eu havia pisado em um cemitério uma única vez antes. A morte era algo que só acontecia com os outros. Minha estreia nas grandes perdas, portanto, foi justamente com meu pai – adorado, presente e parceiro. E eu levei muito, muito, muito tempo para me organizar e situar o significado dessa perda no meu mundo, na minha vida. Hoje sei que apenas consegui fazer efetivamente o luto pela perda do meu pai quando a Lina nasceu, 16 anos depois.
Foi só quando minha filha nasceu em um mundo no qual o avô materno não mais existia que entendi de fato (e não apenas racionalmente) a importância de eu me permitir sentir a tristeza da perda, ter raiva, me sentir injustiçada, chorar copiosamente de saudade quando dava vontade, rir desbragadamente com as lembranças boas sempre que elas vinham. Sem tempo certo. Sem abafar qualquer sentimento porque “já fazia tempo demais”, “já devia ter passado”, “ele estava sofrendo muito”, “as coisas são sempre pelo melhor”, “ele está melhor do que nós” ou qualquer outro lugar-comum inócuo que as pessoas dizem a quem teve uma perda.
Quando ainda era bem pequenininha, minha filha que hoje tem 11 anos entendeu que a morte e as perdas fazem parte da vida. Lamento profundamente que o avô materno e a avó paterna ela conheça apenas das histórias e das fotos que contamos e mostramos e me entristece vê-la ainda chorar às vezes de saudade do avô paterno com quem conviveu afetuosamente até os sete anos de idade. Mas também vejo que ela convive melhor do que os adultos da vida dela com a ideia de que a vida segue apesar das perdas e, de certa forma, graças a elas.
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São muitas as fontes em que busco conhecimento e identificação para enfrentar meus lutos. Caso o querido leitor se interesse, eis alguns dos meus livros preferidos que tratam do tema, direta ou indiretamente:
- O ano do pensamento mágico e Noites azuis, da jornalista americana Joan Didion.
- Fazes-me falta, da escritora portuguesa Inês Pedrosa.
- O brilho do bronze, do historiador brasileiro de texto impecável Bóris Fausto.
- A ridícula ideia de nunca mais te ver, da espanhola Rosa Montero.
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