Ídolo, do grego “simulacro”, pessoa ou figura a quem se atribui qualidades divinas ou representação de um ser fantástico, com atributos divinos. Ao pé da letra fica difícil imaginar que ainda existam figuras com tamanho poder e grandeza. Estamos em falência de ídolos já faz algum tempo. Não entendo isso como algo totalmente negativo, já que tais figuras impecáveis expõem uma incapacidade e fragilidade do humano e a necessidade de, ao mesmo tempo, colocar-nos um ideal que muitas vezes frustra e desumaniza quem ocupa esse posto. Por outro lado, espelhar-se em pessoas que admiramos, que representam ou traduzem algo que nos comove, ou que nem mesmo sabíamos sentir parece ser não só prazeroso, como também necessário.
Meu ídolo, talvez o único da vida adulta (apesar de nunca ter sido uma adolescente com ídolos a ponto de colar cartazes no quarto) tem nome e sobrenome: Vitor Hugo Alves Ramil. Ou apenas Vitor Ramil.
Por que fazer uma crônica sobre meu declarado amor a esse artista pelotense que nem mesmo é tão inacessível, tão fenômeno global ou nacional? Talvez porque ele represente para mim o que um ídolo deveria ser. Eu sei que ele existe, já o assisti inúmeras vezes, já tietei, fiz foto, consegui autógrafo. Mas não é isso que importa. Eu exalto a existência de um artista como ele. Eu me espelho nele, quero ser como ele quando eu crescer.
Vitor entrou na minha vida meio sem querer. A primeira música sua que ouvi, ainda adolescente, foi “Loucos de cara” que, também de cara, gostei. “Estrela, estrela” me cativou pela letra que à medida que fui amadurecendo, passei a compreender cada vez com mais nuances psicológicas. Mas até então nada de grandes paixões, como nutro atualmente, apesar da beleza e do significado das letras.
Foi quando assisti ao show do álbum “Foi no mês que vem”, no Teatro São Pedro, com todas as músicas clássicas da sua carreira em releituras, que a grandeza desse compositor/poeta me cativou. A partir daí, suas músicas nunca mais saíram das minhas listas das favoritas. Mas o que vale a pena falar aqui e que entendo que vale como referência para qualquer arte ou fazer, é o que ele sabe contar, o processo criativo que ele tem. Somente à medida que assistia a todos os shows que podia, como continuo fazer até hoje, vim a descobrir histórias sobre como ele foi criando suas canções, o que o inspirava.
Mas ídolo mesmo ele se tornou quando fui no show de lançamento do álbum Campos Neutrais, também no mesmo São Pedro, aqui em Porto Alegre. Fui sem ter escutado nenhuma das músicas, todas inéditas. Sentada na plateia, tive uma experiência dessas que se podem considerar epifânicas na vida. Cada música executada com uma turma de músicos absolutamente impecável, letras comoventes, a voz pura e perfeita ecoando no teatro. Ali foi como se eu estivesse lendo um livro, uma história em forma de melodia e letra. Labirinto é uma pequena aula sobre o amor, Terra é uma tradução em forma de poema com uma letra que é tradução de mim. Ana, uma declaração de amor à sua esposa. Duerme, Montevideo nos diz “viver é maior que a realidade”. Então, no show, Vitor conta a história da criação de Hermenegildo, canção nomeada em função da praia de Santa Vitória do Palmar. Ele conta que criou a letra ao ficar mirando as casas de salva-vidas na areia, com seus pés altos, e pôs-se a imaginar elas ganhando vida. O que ele cria a partir desse devaneio é de uma beleza impecável.
Não lembro onde ouvi que uma de suas músicas mais conhecidas, Satolep – que vergonhosamente tardei demais a descobrir que era Pelotas escrita de trás para frente – foi escrita aos pedaços, frases soltas que ele ia adicionando à medida que acontecimentos ou situações corriqueiras de sua casa de origem que iam acontecendo. E foi assim que esse artista foi me conquistando. Mostrando que o mais profundo e universal a gente faz em casa, com o que há de mais íntimo. Expondo sua estética do frio, um pouco melancólica, saudosista, amorosa e de busca por si próprio. Foi assim que encontrei um ídolo para chamar de meu. Foi assim que me identifiquei com um jeito de criar e enxergar o mundo. E isso me trouxe alívio. Queria saber dar destinos mais belos aos meus devaneios da mesma maneira como ele consegue. Mas ídolos servem para isso mesmo, para existirem e a gente seguir criando para um dia chegar perto do que eles são.
Não sei o quanto Vitor se sabe genial, brilhante. Gosto disso nele também. Mesmo num momento de maior destaque nacional, ele decide voltar às origens e morar em Pelotas novamente. No ninho onde ele cria, no ninho onde ele mora para poder fazer quem o ouve voar longe também.
Começo meu ano aqui escrevendo sobre meu ídolo, para que você leitor pense nos seus. Se quiser, eu empresto o meu. E para falar também sobre o que desejo para meu ano que recém começou: ser capaz de criar me sentindo em casa, fazer crescer ideias capazes de ganhar vida de maneira natural, como a casa de salva-vidas da canção. E que eu respeite meus devaneios, pois “quando fico olhando, como se estivesse ausente, tô só viajando, não penses que estou me perdendo.”
Eu sou um robô salva-vidas,
para o qual não há salvação
Corpo de madeira e sal,
pés de espuma
Ondas varrem meu coração
há naufrágios dentro mim
em meus olhos nuvens se vão à deriva
(…)
Neste fim de tarde ao sul
Quem virá?
Neste fim de tarde sem fim
Quem irá me encontrar?