Não foi por falta de tentativa.
Filho de pai católico e mãe espírita, fui batizado, fiz catequese e comunguei. Passei minha infância recebendo passes e ouvindo palestras sobre os ensinamentos de Allan Kardec. Tive uma tia-avó muito querida que estudava a cabala e uma avó que psicografava mensagens vindas do outro lado.
Nada.
Nada disso conseguiu me demover da minha convicção de que, infelizmente, não existe muita coisa a não ser aquilo que está por aqui, de que a transcendência é um conforto que nos damos para lidar com nosso medo da morte e do desconhecido.
O que me fez sempre ter muita admiração por aqueles que têm fé.
Porque realmente acho que fé é algo que se tem ou não.
Tenho inveja de todos os amigos e conhecidos que podem contar com a certeza de uma redenção vindoura ou com uma explicação sobre-humana para o sofrimento. Que supõem que tudo vai dar certo no final e que carregam a cruz que têm condições de suportar.
Apesar da inveja, desde que me apaziguei com a ideia de que eu realmente não conseguiria ser um homem de fé, passei a conviver melhor com a percepção de que o mundo é um lugar silencioso, de que o universo não dá a mínima bola pra mim e de que o destino é fabricado no dia a dia.
Entretanto, como todo bom neurótico, o máximo que consigo é ser um ateu não-praticante.
Ainda faço meus pequenos rituais supersticiosos – três lentilhas na carteira na virada de cada ano – e ainda tenho alguns hábitos estranhos – por algum motivo, associo a presença de joaninhas à boa sorte, e em geral as fotografo quando as encontro por acaso.
E eu mal e mal acredito em sorte, diga-se de passagem.
Fato é que parece ser impossível para nós, neuróticos que somos, nos desfazermos completamente da noção de que somos absolutamente insignificantes para o universo.
O que tem me feito ver com curiosidade alguns fenômenos contemporâneos como a popularização de astrologia e das mais variadas práticas místicas. Alguns inclusive dirão que o fato de eu ser um capricorniano explica o meu ceticismo.
Também tenho me interessado pela forma como algumas crenças não são confissões explícitas a uma religião ou um culto, mas fazem parte da nossa relação com o mundo, são fruto da forma como fomos subjetivados.
Por exemplo: não é incomum escutar no consultório pessoas que afirmam que, se encontraram algum revés em uma empreitada (alugar uma casa nova ou sair com aquele boy magia), então isso “não era para elas, não era o que o destino queria”. O corretor de imóveis não respondeu à mensagem naquela noite? Então a casa não era a predestinada. O contatinho não retornou a mensagem no Tinder? Não era o amor esperado.
Repare o leitor que há aí uma suposição de que o universo tem uma narrativa pré-determinada, que alguém ou algo já sabia o que iria acontecer. Mais ainda: esta entidade não só tem este saber como dá sinais: se não deu certo, não era para acontecer.
É um mundo falante, eloquente.
Mas a coisa começa a ficar mais complicada quando alguém passa a narrar toda a sua história desta forma. Alguém que ficará sempre à espera de um sinal que lhe garantirá que esta ou aquela escolha é a certa, de que o caminho escolhido é o correto.
Acaba sendo uma forma de evitar a frustração: se não deu certo, é porque o destino não queria que desse. Se deu, ótimo, foi feita a escolha certa. Só que a frustração é parte do processo, é uma forma de nos perguntarmos pelo que desejamos, e não um sinal de que as escolhas foram equivocadas. A falha, o erro e o arrependimento são ótimos modos de nos atentarmos para o que queremos.
Além disso, muitas vezes esta hipótese de que há um caminho certo é também paralisante. Até porque ela carrega consigo uma suposição de que só se pode dar um passo na vida quando se tem a absoluta certeza deste movimento. Quando todos os sinais tiverem sido desvendados ou todos os astros tiverem se alinhado.
A criatividade de inventar uma vida interessante para si acaba sendo substituída por uma tentativa repetida de adivinhação do que seria a decisão supostamente acertada, como se a nossa aventura aqui neste mundo fosse uma prova de múltipla escolha, e não uma longa e muitas vezes entediante dissertação.
Talvez a nossa existência do lado de cá fosse realmente bem mais fácil se os astros ou as divindades tivessem um destino prescrito e que pudesse ser desvendado pelos sinais enviados pelo universo. Entretanto, nesta vida cuja história já foi escrita e antecipada, ainda seríamos autores de nossa narrativa?
Claro que há outras formas de se relacionar com a religião e com a espiritualidade. Inclusive, quando algum paciente me conta sobre seu signo ou sua crença, entendo como uma forma muito rica de alguém falar de si, de explorar a imagem que vê de si no espelho (“sou vingativo porque sou ariano”, “sou criativo porque sou de Aquário”).
O que me preocupa é quando a fé surge como desresponsabilização pelas escolhas ou como um modo alienado de justificar os próprios atos.
Supor que alguém em algum lugar tenha um plano para nós nos abriga contra o desamparo de nos vermos sozinhos frente aos riscos das escolhas que fazemos, mas também pode nos relegar ao empobrecimento de não nos responsabilizarmos pelo caminho que tomamos e, assim, terceirizarmos a nossa história aos desígnios de um universo que fala alto demais.