Vivemos numa era tecnológica que nos libertou das agendas telefônicas, dos mapas em papel, mas simultaneamente nos arremessou numa dependência ao Wi-Fi, ao 4G, ao WhatsApp, ao direct e aqui especificamente meu alvo de reflexão, o Waze.
Esse aplicativo mágico nos mostra os melhores itinerários para se chegar em um determinado local, nomeado por ele de “destino”. Sinaliza-nos onde ficam os controladores de velocidade nas estradas para que possamos seguir sendo imprudentes e apenas naquele ponto finjamos que andamos dentro do limite de velocidade máxima estipulado. Avisa-nos onde há tráfego mais intenso, quanto tempo é estimado que fiquemos no engarrafamento, oferece trajetos alternativos, ensina a voltar ao caminho “certo” caso erremos o trajeto. Mas o Waze falha. Quando optamos em desobedecê-lo, ele não aceita facilmente e insiste que demos retornos muitas vezes absurdos para que voltemos ao trajeto por ele entendido como o melhor. Como isso foi acontecer? Por que chamamos destino um lugar geograficamente definido se o conceito imagético de destino é tão mais intangível e porque não dizer, utópico? Obviamente seria hipocrisia não enfatizar todos os benefícios que esse aplicativo oferece, mas isso todo mundo sabe. Meu objetivo aqui é pensar na armadilha contida nesses tais benefícios.
Nesse feriado de Páscoa fiz uma viagem de carro para um local novo que ainda não conhecia. Sabia que haveria momentos do trajeto nos quais certamente meu 4G me deixaria na mão e consequentemente o meu Waze não funcionaria. Sim, o trajeto segue ali, naquela linha azul, mesmo sem sinal, mas o resto das informações fica inacessível. A tela me comunicava “off-line”. Sim, eu estava off-line em uma zona desconhecida, no volante, com uma criança que dependia completamente de mim sem saber ao certo se meu destino seria mesmo chegar ao meu destino ou se eu pararia em um lugar completamente diferente. Não, eu não sou uma pessoa que gosta de improviso, de incertezas (pelo menos dentro do que é passível de haver um pouco de controle). Amo dirigir na estrada, mas de alguma forma gosto de saber especialmente quanto tempo falta para chegar no lugar que desejo. Me vi ali, off-line, preocupada, o Waze dando umas piradas e recalculando rotas constantemente, aumentando minha insegurança.
Segui dirigindo – porque é isso mesmo que a gente faz quando se entende minimamente perdido (o que em realidade, eu não estava). Mas o que me fez pensar essa experiência é o quanto a tecnologia alimentou nossa onipotência de deter controle sobre tudo e um domínio ilusório sobre experiências, relações e acontecimentos que em verdade nunca tivemos nem teremos. Na hora do aperto, o que mais funcionou foi parar sempre que via um posto de gasolina e usar do bom e velho “bom dia, senhor, senhora, pode me dar uma informação?” para ir me tranquilizando de que eu estava no caminho certo.
Eu cheguei, deu tudo certo. Cheguei e voltei. Mas será preciso a gente perder esses símbolos de controle, ainda que temporariamente, para nos lembrarmos que nada substitui os vínculos e um bom e sincero sorriso no rosto com a humilde postura de estou perdido? Será que lembrar que no fundo nunca teremos certeza absoluta de onde o nosso destino vai nos levar não deveria ser nosso aplicativo mais usado?
Coincidência ou não, dei-me conta de que minha filha está trabalhando na escola exatamente a questão dos mapas, da geografia e cartografia e o tema de casa dado a ela no primeiro dia de aula pós-viagem foi escolher um local de sua preferência e tentar desenhar um mapa em sua cabeça e depois no papel, do itinerário que precisa ser feito para chegar nesse local. É uma tarefa para que eles aprendam a usar o próprio Waze mental que nós adultos vamos perdendo com o advento dos aplicativos que nos “poupam” tempo de pensar, mas justamente vão progressivamente empobrecendo essa habilidade nossa de fazer um itinerário na nossa mente, sem precisar de telas concretas.
A evolução tecnológica é irrefreável, não sei que outros aplicativos ainda serão criados com a justificativa de facilitar a vida – e que na verdade vão nos escravizando. Não sou saudosista a ponto de preferir os tempos antigos, mas gosto de pôr em cheque essas construções coletivas que por vezes parecem nos tornar progressivamente, cada vez um pouco menos, humanos.
A única certeza que tenho é que eu adoro me iludir quando escuto do meu Waze “você chegou ao seu destino”. Eu quase acredito. E vocês?
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Foto da Capa: Unsplash