“Pago para você ser amigo do meu filho durante duas horas, dois dias por mês.”
Essa era a proposta de Donna Herter, mãe de Christian Bowers, um homem com síndrome de down de 24 anos. “Tudo o que você precisa fazer é sentar-se com ele e jogar videogame. Nada mais”, ela complementou.
O anúncio causou polêmica nas redes sociais, sendo tema de uma matéria na Revista Crescer que me foi encaminhada pelo meu atento amigo Felipe Cardon. A iniciativa tentava combater a solidão sentida por Christian. “Quando meus amigos vêm?”, é o que ele perguntava em casa.
A reação da maioria das pessoas que comentaram a publicação foi se solidarizar com a mãe e o rapaz. Porém, como a culpabilização materna nunca falha, a mãe também foi criticada por inúmeros internautas que a acusaram de “vender o filho”.
O tema da solidão é bastante conhecido por quem é ou convive com pessoas com deficiência. Patrícia Lorete, mulher com deficiência e consultora em capacitismo, em sua página “Janela da Patty – Inclusiva”, afirma que esse é um dos assuntos mais abordados por seu público: “o sentimento de solidão”.
Diz ela que o isolamento vivido pelas pessoas com deficiência leva à solidão e a um “sentimento penoso de tristeza, carência e desamparo, o que traz à pessoa isolada um gigantesco sofrimento psicológico”. A Dra. Raquel Monde aponta que a solidão é o “principal fator de risco para a ideação suicida” em autistas, ou seja, ter pensamentos de tirar a própria vida, sendo um indicador importante para intervenções profissionais.
Em estudo sobre amizade e autismo, Elizabeth Fein argumenta que as amizades e outras relações extrafamiliares são determinadas pela escolha individual, com laços formados em torno das características pessoais e qualidades sociais de cada pessoa e tendo em vista um relacionamento de efeitos positivos recíprocos. Nesse contexto, quem não possui as habilidades determinantes para tanto é frequentemente excluído do fluxo da vida social.
Autistas, em maior ou menor grau, têm dificuldade de estabelecer os contatos iniciais em uma conversação, de entender linguagem figurada ou não-verbal que fazem parte do repertório natural de outras pessoas, dificultando o processo de “fazer amigos”.
O problema é que, a cada eventual fracasso na comunicação e em estabelecer uma relação, o medo da rejeição aumenta, fazendo com que a pessoa se retraia ainda mais, alimentando a exclusão.
Outro ciclo vicioso apontado diz respeito à aprendizagem das habilidades sociais. Ora, a gente só aprende a ter amigos e se relacionar com as pessoas no convívio diário. Não há livro que seja suficiente para isso. Então, a pessoa que está ausente dessas trocas não aprenderá como fazê-las.
No estudo que citei, a autora se refere à Martina Grace, terapeuta que repete algo que já ouvi muitas vezes de autistas, familiares e profissionais ligados ao autismo: “somente um amigo”. Um único amigo já faz uma diferença danada em quem está passando pelo ostracismo social
Martina diz, provocando choque e risos na palestra: “Pague alguém se for preciso”. E foi exatamente o que essa mãe fez, buscou uma alternativa porque cansou de ver o filho sozinho e triste. Que ela tenha chegado a esse ponto, só mostra o grau de individualismo e da invisibilidade da pessoa com deficiência nos dias atuais.
Como diz o belo provérbio africano, “é preciso uma aldeia para se educar uma criança”. Não é porque a criança cresceu que a aldeia deve dar as costas para ela.
Este texto foi publicado aqui originalmente em 28/02/2023
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