Em italiano existe uma expressão muito interessante para falar de profissões: fare il/la. O verbo fare significa fazer, então a expressão seria algo como “faço o/a + profissão”. Seria a ação do fazer laboral. Em outras palavras, em italiano é praticamente o mesmo dizer “sou contadora” que “faço trabalho de contadora” ou “trabalho de contadora”, sem nenhum prejuízo de significado.
Em português, no entanto, não é o mesmo dizer “sou contadora” que “trabalho de contadora”. A mensagem que se passa, dependendo da escolha entre as duas opções, é bem diferente. Na primeira existe algo mais forte dado pelo uso do verbo ser: “eu sou contadora” parece querer refletir algo da personalidade da pessoa, de quem somos, como se a profissão tivesse plasmado algo na forma como a pessoa é.
Quando dizemos “trabalho como contadora”, a relação que se nota com a profissão é mais distante, algo como, trabalho com isso para pagar meus boletos. Existe uma clara divisão entre o ser profissional e o ser pessoal.
Se pensarmos na história das profissões, antes era muito provável que você herdasse um ofício. Uma família de médicos, de padeiros, de comerciantes, e por aí vai. De fato, muitos sobrenomes surgiram derivados das profissões da família. Por exemplo sapateiro em espanhol (Zapatero) e alemão (Schumacher), ferreiro em italiano (Ferrari) e português (Ferreira), carpinteiro em francês (Carpentier), padeiros em inglês (Baker). Como fugir de uma profissão se meu sobrenome vem dela?
Mas hoje em dia a coisa mudou e muito! Os filhos já não estão tão atados às profissões de seus pais, e a escolha profissional em muitos casos é livre. Vejo diversas pessoas escolhendo estudar e trabalhar com algo por vocação. Muitos professores, psicólogos, enfermeiros, médicos trabalham por amor.
Há também quem escolhe trabalhar com algo porque dá dinheiro. Esse é meu caso. Escolhi estudar contabilidade porque era uma profissão bem remunerada e com rápida saída laboral. Queria dinheiro para poder viajar pelo mundo. Viajar era uma necessidade tão forte que quando me formei na melhor universidade do país, não fui buscar meu diploma porque não estava no Brasil.
Até hoje meu diploma não está assinado por mim, como se eu não pactuasse o que estava escrito ali. Por muito tempo eu não coloquei meu diploma na parede porque sentia que aquele “papel” não me representava.
O tempo passou, continuei trabalhando como contadora, mas percebendo que aquilo ali não era para mim. Tentei estudar para ser professora de português, numa tentativa de fuga, mas não deu certo, não tenho vocação para ensinar.
Durante a pandemia comecei a fazer terapia e o tema apareceu de mansinho. Contei à minha terapeuta como parecia que a vida no escritório era uma máquina de moer carne e como eu adoecia por isso. Depois de um tempo comecei a colocar essas dores em textos e poemas, e então minha analista muito lacaniana teve uma jogada excelente com a palavra “contadora”. Ela disse: “Você está contando suas dores”.
Hoje posso dizer que trabalho com contabilidade e conto minhas dores. O diploma está agora pendurado na parede, mostrando o quanto eu ralei para me formar, mas sua finalidade já não é dizer que sou contadora, mas dizer que eu não (somente) sou minha profissão.
*Carolina Murgi. Sou contadora, no trabalho conto números dos outros, aqui conto minhas histórias.
Foto da Capa: Freepik – AI Generated
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