Você provavelmente já deve ter se perguntando, caro leitor, especialmente em um momento de profunda tristeza ou raiva, se você é normal. Sabe aquelas situações em que você é o único de seus amigos a pensar diferente, ou quando você faz alguma coisa que supostamente vai contra o seu sucesso profissional ou amoroso? Ou, exemplo meramente ilustrativa, quando você é o único da família a não marchar em prol de um idoso impotente com aspirações a ditador?
São várias as ocasiões em que nos olhamos no espelho e ficamos em dúvida se o que estamos fazendo tem sentido, se as nossas escolhas são aceitáveis ou mesmo se o que estamos sentindo é condizente com as dificuldades que enfrentamos.
A resposta que tenho para lhe dar, leitor, é que, se tudo estiver correndo como esperado, não, você não é normal.
Mas calma: isso é bom, eu diria até saudável.
Normalidade é um conceito difícil de definir. Muito difícil. Aliás, muitas tentativas têm sido feitas há séculos para elaborar uma mínima noção sobre o que é “ser normal”. Não quero aborrecer o leitor com toda a história deste debate, mas acho essencial ressaltar que, apesar de este ser um papo que parece reservado às torres de marfins acadêmicas, todos nós estaremos nos havendo, vez ou outra, com a pergunta pela própria normalidade.
Quando alguém próximo morre, por exemplo, é bastante comum termos reações que não são esperadas: ali onde se imaginava que nos desfaríamos em prantos, simplesmente acordamos no dia seguinte e tocamos a vida. A mesma estranheza nos é causada quando todos parecem muito bem com a ideia de trabalhar sessentas horas por semana e sentimos que isso não é o que queremos da vida, mesmo que assim talvez percamos parte do nosso rendimento financeiro. Será que é normal não querer o que todos parecem querer? Será que é normal ser uma nota dissonante na partitura do discurso social?
Citei esses exemplos porque gostaria de explicar para meu leitor que “normalidade” tem muito menos a ver com concepções naturais e muito mais com acordos sociais tácitos e amplamente difundidos. Ou seja, sendo bem claro: a normalidade é um produto cultural, e não algo evidente e observável por medições de, por exemplo, neurotransmissores circulantes no cérebro.
Em geral, quando falamos de forma corrente sobre “normalidade”, estamos na verdade falando de adequação a normas pré-concebidas. Isso pode parecer pouca coisa, mas, na verdade, esta noção de “normalidade” impacta diretamente na sua vida cotidiana, caro leitor. Por exemplo: quando você vai a um médico e seu exame de glicemia está alterado, você será categorizado como um pré-diabético ou um diabético, nos casos mais complicados. Isso faz com que você tenha que mudar sua alimentação, repensar seus hábitos de vida, sua rotina de exercícios físicos, suas pequenas recompensas diárias depois do trabalho, os encontros com os amigos para beber alguma coisa… Enfim, sua vida toda precisará ser revista caso o nível de glicose em seu sangue estiver em desacordo com o que seria adequado – a palavra aqui é importante. Ainda bem que décadas e décadas de estudos médicos nos permitem saber quais níveis glicêmicos colocam a nossa vida em risco.
O problema é quando tentamos transpor esta mesma lógica para o campo do sofrimento psíquico: qual elemento precisa ser medido para sabermos se o que estamos fazendo é normal ou não? Quais índices evidentes nos dariam tal certeza sobre a adequação de nossos comportamentos?
O ponto é, sendo bem direto: não existem indícios evidente e mensuráveis do que seria a “normalidade” do ponto de vista psicológico. O que temos, sim, são discursos dominantes que estabelecem alguns ideais com os quais nos comparamos para pensar se estamos de acordo com o que é esperado de nós. O que nos leva para o problema central deste assunto: sendo estes discursos construções sociais, eles talvez não nos digam tanto sobre nosso bem-estar e nossa saúde mental, mas sim sirvam como estratégias de controle e dominação do nosso imaginário. Em um contexto social de exploração e esgotamento, ser normal pode não ser a melhor alternativa. Estar adequado às exigências do mercado e do capital é, infelizmente, uma forma de alienação voluntária.
Falando em outros termos: será que podemos dizer que é “normal” trabalharmos mais do que concordamos em nosso contrato com a empresa que nos emprega? Será que é normal levar o corpo ao limite de um infarto para dar conta das demandas de produtividade que nós muitas vezes impomos a nós mesmos? Será que é “normal” acharmos que realmente as mulheres de nossa sociedade estarão mais seguras se dispuserem de armas para lidar com a violência dos homens?
Em uma época em que nos vemos cada vez mais sufocados por demandas, compromissos e afazeres, equiparar produtividade com normalidade é, no mínimo, uma miopia crítica profunda, quando não uma perversidade que se reveste de um discurso de “querer o bem do outro”.
Digo que este tema tem muito a ver com o leitor porque quando você for buscar um atendimento psicológico, por exemplo, o profissional que vai lhe atender estará trabalhando, mesmo que de forma involuntária, com alguma ideia de “normalidade” em mente.
Existem práticas terapêuticas que partem do princípio de que “normalidade” significa adequação às demandas da cultura, que pensarão o tratamento como um certo adestramento humano para que o paciente melhor dê conta das exigências sociais – sem questionar o quão violentas são essas demandas. Por outro lado, felizmente também contamos com práticas de cura que entendem a “normalidade” é um discurso impositivo de adequação que, no fim das contas, reduz a complexidade humana à obediência servil à lógica do capitalismo tardio.
Isso se reflete no modo como você será acolhido pelo profissional da saúde e na forma como o seu sofrimento será entendido: talvez o fato de você não conseguir fazer os cinquenta relatórios que seu chefe lhe pede todos os dias não seja um desvio a ser corrigido, mas uma denúncia que precisa ser escutada por você mesmo. O problema é que isso faria com que você tivesse que se perguntar pelo seu desejo, seus interesses, suas aspirações e, especialmente, pelo que você entende como uma vida boa.
Além disso, uma prática clínica que realmente leve a sério o seu sofrimento, também precisa lhe ajudar a perceber que, no fundo, nós somos feitos de conflitos e incoerências, dissonâncias que não encontram lugar de reconhecimento em um discurso hegemônico que glorifica a autenticidade, a identidade e o “controle de si mesmo”.
Infelizmente, muitos de nós temos preferido tocar pelo tom que nos é imposto, sem nos perguntarmos se, talvez, nós não preferíssemos compor uma outra música que mais fizesse sentido para nossos ouvidos – mesmo que isso soasse como dissonância em um mundo tão acostumado a cantarolar sempre a mesma melodia.
E pior: você irá encontrar clínicos muito bem treinados para se acharem no direito de se colocarem como maestros que irão corrigir as suas notas fora do tom, talvez justamente aquelas notas que permitiriam a você questionar se quer ou não fazer parte do coro dos exauridos.