Estes dias eu lembrava da primeira vez que fiz um perfil em uma rede social.
Na época da faculdade, um querido colega me mandou um convite para um tal de Orkut, um site inovador em que se podia criar uma conta para interagir com os amigos e reencontrar pessoas.
Àquela altura, eu tinha uma tremenda dificuldade de me expor, de falar sobre mim publicamente. Mas isso foi cedendo à medida em que, depois de um bom tempo de análise, eu fui percebendo que quando falamos de nós, estamos na verdade tratando de um outro. Nós nunca conseguimos propriamente falar a verdade sobre nós, mas somente sobre aquele reflexo que vemos no olhar dos outros e que chamamos de “eu”.
A constatação de que, no fundo, a personalidade é um ilusão pode ser assustadora; por outro lado, pode ser também algo libertador não estar endividado o tempo todo com uma suposta coerência de ser sempre o mesmo.
Mas na época em que este convite para entrar no Orkut chegou, eu tinha quando muito vinte anos e ainda estava bastante convicto de que podia saber algo “autêntico” sobre mim. Imagine o leitor, então, o quão perturbador foi ter que responder àquela pergunta que o site já de cara propunha: “Quem é você?”.
Percebi que alguns conhecidos preenchiam aquele espaço com um poema ou uma citação literária. Como eu me via como um jovem sem lá muita graça e encanto, não me achava digno de ser descrito de forma tão poética. O que redobrou a minha angústia: o que então escrever ali?
Hoje em dia, as redes sociais contam cada vez menos com um espaço para dizer quem somos. Por escrito, pelo menos. A tendência, pelo que temos visto, é uma redução cada vez mais acentuada da presença da palavra e uma inflação das fotos e imagens de si. Os textões de Facebook já estão fora de moda, substituídos pelos reels no Instagram ou pelas dancinhas de TikTok. Por si só, isso não é lá tão problemático: talvez até nos poupe do fardo de responder à impossível questão sobre quem somos: “eis a minha selfie, o que você vê é o que eu sou”.
Sim, a pergunta pela identidade é uma questão impossível e, como é próprio de tudo que é impossível, nós não abrimos mão de tentar respondê-la.
E a forma como damos conta desta pergunta diz muito sobre a época em que vivemos. Aliás, este é um dos motivos pelos quais é impossível responder à questão sobre a identidade: nós só temos como nos ver através do reflexo que imprimimos nos outros, e mesmo as palavras que usamos para falar de nós são socialmente determinadas.
Uma destas palavras que acabou ganhado relevância nos últimos tempos é intensidade. De uma hora para outra, todos viramos muito intensos. Queremos nos cercar de pessoas intensas, desejamos fazer programas intensos, até mesmo desculpamos os nosso comportamentos egoístas e autocentrados por sermos, claro, muito intensos.
Basta vermos a quantidade de participantes do Big Brother que se descreveram como intensos ou intensas, como alguém que “quer aproveitar a vida ao máximo”.
O problema é que isso não diz nada.
Mesmo assim, vale a pergunta: por que nos descrevemos como tão intensos?
Venho construindo uma hipótese de resposta: penso que esta intensidade toda surge como uma espécie de imperativo cultural justamente porque herdamos das gerações que nos antecederam um mundo que vemos um tanto quanto entediante.
Sublinho: um mundo que nós supomos entediante.
Claro que estou falando de um recorte bastante específico, ignorando nuances socioculturais de parcelas da população à qual não pertenço. Gostaria que o leitor levasse isso em conta.
Mas me parece que as atuais gerações olham para trás e veem pais que dedicaram e ainda dedicam a sua vida ao trabalho e às tarefas burocráticas da vida. Pais que, muitas das vezes, foram os primeiros a ter acesso ao ensino superior, por exemplo, e se sentem endividados com este privilégio – dívida que acaba retornando como um senso de responsabilidade que pode esvaziar a dimensão lúdica da vida.
O que parece ser transmitido por estas gerações aos seus filhos é que a realidade precisa ser sempre levada muito à sério e que se deve fazer o que deve ser feito; se sobrar algum tempo, ótimo, aí sim podemos nos divertir um pouco.
Isso talvez tenha sido tomado pelas gerações mais novas como um legado de um mundo sem graça no qual algo só tem relevância e valor se for vivido intensamente. Uma realidade anestesiada que precisa ser despertada de seu torpor por um barulho muito estridente. Basta vermos o quão barulhentas são as redes sociais hoje em dia: a música é sempre alta, as pessoas sempre gritam, tudo é sempre muito.
Paradoxalmente, esta nossa geração que tanto almeja viver tudo tão intensamente é a mesma profundamente angustiada por não saber o que realmente deseja. Perguntar-se sobre as motivações e os quereres requer silêncio, tanto concreto quanto metafórico. Um mundo que não silencia também emudece o pensamento.
Em uma sociedade estridente em que tudo apita e faz alarde, a intensidade é antes uma alienação do que uma forma realmente satisfatória de estar no mundo. Quando tudo precisa ser tão intenso, nada mais tem intensidade, quem dirá profundidade – perdem-se os contrastes que fazem com que certas experiências sejam mais marcantes que outras. É uma outra forma de anestesia, mas desta vez pela saturação das ofertas de satisfação, e não pela sua falta.
Quando perdemos de vista as pegadas que vamos fazendo pelo caminho, as marcas que nos ajudam mais ou menos a delinear o que buscamos, acabamos indo na direção da primeira luz que pisca mais forte ou do som que nos chega mais alto, sem sequer nos perguntarmos se nos sentimos à vontade sob aquela iluminação ou se gostamos daquela música.
A intensidade, quando um imperativo, acaba sendo um modo de evitar com que nos coloquemos a impossível, entretanto necessária, questão sobre quem somos e o que desejamos. Na vida modulada pelas redes sociais, a vida que vivemos hoje, as sereias não cantam: elas gritam.