Eu sei que você está cansado, caro leitor.
Eu também sei que eu estou cansado. Que seu vizinho está cansado. Seu colega de trabalho? Cansado, também. E eu sei que você já até cansou de dizer que está cansado. Como eu sei disso? Ora, eu sei disso porque nós fizemos da exaustão um troféu, uma condecoração que carregamos em nosso peito, uma pulseira VIP que nos permite fazer parte da festa. O nosso mundo, leitor, é o dos exauridos e acabados.
Celebramos as horas extras sub-remuneradas, as pizzas que a agência “gentilmente” (aspas irônicas) comprou para virarmos as noites naquele job interminável. Inclusive até postamos nos stories a frase “terceiro turno começando” acompanhada daquele emoji ridículo de bracinho flexionado mostrando o músculo, esperando que, com isso, o mundo nos veja com bons olhos.
Mas a gente esquece que essa é apenas uma maneira de contar a nossa história, que nós poderíamos ter construído uma realidade coletiva em que o trabalho não fosse a nossa única forma de reconhecimento. Nossa, digo, dos meros mortais, não das celebridades que ganham fortunas porque nós, além de cansados, também somos essas criaturas estranhas que adoram aqueles que não fazem absolutamente nada. Talvez seja isso que tanto admiremos nas celebridades: o fato de elas terem encontrado um outro caminho no mundo. Viva às Kardashians, que enriquecem fazendo… nada.
Infelizmente, no mundo em que vivemos, aqui no rés do Olimpo, não há outra forma de ser remunerado a não ser vendendo o nosso tempo e a nossa atenção. Por mais que surjam as centenas de posts ensinando a fazer o primeiro milhão antes dos trinta investindo em bitcoins, ou que agora seja moda todo mundo se achar um “empreendedor”, ainda assim, sinto dizer, nada disso funciona. Em um país em frangalhos econômica e moralmente, parece muito animadora a promessa de que nós tenhamos como resolver problemas estruturais através da pura força de vontade individual, mas isso não é verdade.
O engenheiro demitido da sua empresa por “redução de custos” acabou virando Uber e agora se vê às voltas com a impossibilidade de trabalhar por conta do preço da gasolina. A microempresária que precisou fechar sua loja de roupas no começo da pandemia começou a fazer entrega de comida e está cada vez mais exausta recebendo não mais do que cinco reais por viagem. Os exemplos são vários, e certamente o leitor conhece muitas pessoas em situações parecidas.
Atribuir ao indivíduo a responsabilidade por questões que são muitos maiores do que ele e dar às pessoas a ilusão de realização pessoal dentro de um cenário de precariedade é uma forma bastante perversa, ainda que muito difundida, de manter intactos os lugares de privilégio da sociedade.
Um ponto bastante triste desta lógica é não só a atribuição de responsabilidade ao indivíduo, mas também a patologização de comportamentos e sofrimentos que são, ao fim e ao cabo, até mesmo esperados em um mundo em que estamos todos desamparados frente às demandas do mercado. Explico com um exemplo: é muito comum no ramo das empresas de tecnologia o chamado crunch, ou seja, aquele esforço (o famigerado “110%”) a mais que é pedido dos funcionários quando um novo produto está para ser lançado no mercado. É aquela fase em que se dão os últimos testes e são corrigidos os erros que ainda restaram.
O mesmo acontece também em agências de publicidade: o cliente pede que algum elemento da peça seja alterado e um grupo de funcionários só volta para casa quando tiver atendido a todas as demandas.
É evidente que estas pessoas chegam ao final do mês exauridas e desencantadas com seus empregos. Imagino que isso tudo sejam obviedades para o meu leitor, mas me interessa avançar um pouco mais: o que talvez valha a nossa consideração é o fato de que muitos destes trabalhadores acabam buscando ajuda com profissionais da saúde mental e, aí o que considero grave, são diagnosticados – e medicados – como padecendo de síndrome de burnout.
Digo que isso é grave porque reflete no plano clínico justamente o que eu falava logo acima: estes sujeitos convocados a serem cada vez mais produtivos e “deram cada vez mais de si pela empresa” são rotulados com um diagnóstico que não faz sentido algum. Não há razão para entender como patológico um quadro clínico que é fruto do mecanismo de exploração próprio ao capitalismo tardio. Ao atribuir um diagnóstico àqueles que estão co-optados dentro da lógica neoliberal de superação de si mesmo e de seus limites, acabamos ignorando que a discussão precisa ser bem mais profunda e difícil: é como aliviar a febre sem cuidar da causa da infecção.
Mais uma volta no tema: curiosamente, não são só estes trabalhadores que se vêem adoecidos pela demanda de produtividade. Mesmo aqueles entre nós que supostamente temos uma postura crítica com relação ao contexto social volta e meia nos pegamos dizendo para nossos conhecidos que “estamos bem, trabalhando bastante, correndo como sempre”, como se isso fosse uma espécie de auto-elogio às avessas.
Acabamos nos acostumando tanto a estarmos atarefados e sem tempo que não percebemos, por vezes, que nos relacionamos com o mundo sob a forma de um sacrifício voluntário.
Por que isso?
Talvez uma forma de responder a esta pergunta seja nos darmos conta de que dentro de um contexto em que a nossa produtividade é a medida de nosso valor, nós acabamos por supor que somos tão amados quanto formos úteis à manutenção das coisas como estão. Se nos é endereçada a mensagem de que até o nosso ócio precisa ser produtivo, de que devemos ver a nós mesmos como produtos ou empresas, talvez seja muito difícil nos desvincularmos da culpa de termos tempo livre para não fazer absolutamente nada.
A não ser que tenhamos a sorte de sermos apadrinhados por algum conhecido célebre ou herdeiro.
O que provavelmente não vai acontecer.