Notícia de 2019 diz que Donald Trump tentou negociar um reality show na Casa Branca. A fonte dizia que “Houve várias discussões entre Burnett [Mark Burnett, criador da versão americana de O Aprendiz ] e Trump sobre O Aprendiz: Casa Branca. É algo que Burnett pensa ser uma mina de ouro e o Trump parece muito à vontade para fazê-lo. A nova temporada aconteceria após o fim do mandato de Donald Trump — que pode ser em 2020 ou, caso ele se reeleja, apenas em 2024. Nenhuma das partes confirmou a possibilidade até o momento.”
Se, na famosa passagem de Marx, “A história se repete: primeiro como tragédia, depois como farsa”, que descreve que eventos trágicos do passado que parecem se repetir de forma irônica ou cômica, não apenas o novo governo Trump, mas as suas primeiras medidas de governo, na interpretação dada pela patafísica de Jean Baudrillard, não passariam, na mente perversa do presidente americano, da realização de seu sonho. Enfim, o desejo de Trump se realizou. Não de ser presidente pela segunda vez, mas o de ser o protagonista, mais uma vez, de seu programa preferido, O Aprendiz, agora na vida real.
Sobre a patafísica, a ciência das soluções imaginárias criada por Alfred Jarry (1873-1907), diz Baudrillard que “a ideia é transformá-lo de volta em si mesmo: é assim que a realidade pode ser demolida. Só pode ser definida em uma nova linguagem ainda a ser descoberta porque é muito óbvia: a tautologia“. A eleição de Trump, nos termos de Baudrillard, é uma espécie de realidade que dá uma volta sobre si mesma, espécie de O Aprendiz para todo o planeta, onde o presidente retorna ao papel de sua preferência, não de máximo líder da nação, mas de apresentador do programa que um dia desejou, O Aprendiz: Casa Branca, agora na vida real. Por isso, o governo Trump é essa tautologia, é um vício, não de linguagem, mas de imagem que se transformou em realidade, repetição desnecessária de O Aprendiz. Em grego, tautologia significa “mesmo assunto”. Assim como existem expressões redundantes, existem governos redundantes, que significam a mesma coisa: “subir para cima” ou “mais direita que a direita”, governo americano ou O Aprendiz Casa Branca é aqui a mesma coisa. Mas, como alerta Baudrillard, nesse movimento de volta a si mesmo, existe um perigo: o de demolição da realidade.
De fato, essa demolição já começou. Foi Eliot Weinberger em artigo para a London Review of Books que a caracterizou. Ele diz textualmente: “A composição do governo Donald Trump II é mais bizarra e perigosa que a do Trump I. Eles vieram da Flórida, da Fox News e da Fox Business, homens e mulheres de queixo quadrado, com cabelo grande e lábios de colágeno. Eles vieram do futebol americano profissional e do World Wrestling Entertainment. Eles vieram dos talk shows diurnos e da reality television. Eles saíram “diretamente do elenco central”, como disse o futuro presidente.”Weinberguer enumerou cada um. Do futuro Secretário de Defesa enfeitado com tatuagens supremacistas e um rifle AR-15, passando pela Secretária de Segurança Interna que matou seu cão de caça e depois sua cabra de estimação “porque estava ficando velha e “nojenta”; do futuro Secretário de Saúde e dos Serviços Humanos que já “cortou a cabeça de uma baleia encalhada com uma serra elétrica, colocou-a no teto de seu carro e foi para casa. Ele gaba-se de ter um frigorífico cheio de animais mortos na estrada” ao futuro Diretor do FBI que promete “vingança contra jornalistas desleais” – leia-se de oposição ao governo, o “fim da ‘onda woke’ [o estar alerta para injustiças sociais] em todas as suas formas imaginadas e o retorno da grandeza americana”, a nova equipe de governo é composta por milionários sem qualquer ligação ou experiência no trabalho que vão gerenciar, diz.
Como em O Aprendiz da ficção, o “Você está despedido” foi a tônica. Saem os secretários com experiência no cargo eleitos por Biden e entram o pior elenco [e o termo aqui é adequado] que imaginamos como administradores de estado: a futura Secretária de Educação “está sendo processada por ter permitido o abuso sexual de crianças recrutadas para serem “ring boys” em eventos de luta livre”; o futuro Administrador da Agência de Proteção Ambiental “opõe a legislação sobre ar limpo e água limpa e não acredita que o clima do mundo esteja mudando” e o futuro Diretor dos Institutos Nacionais de Saúde “se opôs à vacinação em massa contra a Covid”. Nem Jair Bolsonaro, em seus melhores [ou piores] sonhos, imaginou tamanho desgoverno como equipe de… governo! As ações de Sérgio Nascimento Camargo, na Fundação Palmares, são fichinha perto do que pode fazer o time de peso que está por vir.
O Aprendiz era produzido pela NBC Television. Trump já se gabava de ter ganho 213 milhões de dólares desde o lançamento do programa em janeiro de 2004. Quando saiu para ocupar a primeira presidência, foi substituído pelo ator e ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger. O Aprendiz fez parte de uma geração de reality shows que conseguiu consolidar-se pela “personalidade intrigante” de Donald Trump, disse o professor Dom Caristi, da Universidade de Ball State. “Tornei-me no mestre da arte da negociação e fiz do nome ‘Trump’ uma marca da mais alta qualidade”, dizia então o empresário antes de assumir seu primeiro mandato. Em cada temporada, dez candidatos enfrentavam-se na realização de projetos dentro de uma empresa ou propriedade de Trump. O vencedor ganhava 250 mil dólares e um contrato numa das empresas. Trump aparecia em momentos chaves, especialmente na cena final de cada episódio, onde, numa sala de reunião da Torre Trump, recebia os candidatos e, usando a frase, “você está demitido”, eternizou-se no imaginário americano.
Agora, quando vemos o anúncio de Trump de cada medida absurda, de cada decreto que elimina anos de conquistas civilizatórias, vemos a mesma face dramática, os mesmos silêncios, as mesmas expressões sérias que marcavam sua aparição em O Aprendiz. Não estamos vivendo uma distopia porque Trump está literalmente retirando os Estados Unidos do mundo civilizado; estamos vivendo uma distopia porque estamos na visão patafísica de Baudrillard, vendo a versão realista de O Aprendiz: Casa Branca, que um dia Trump sonhou protagonizar. Como na primeira campanha, o tempo todo vemos Trump retomando os signos que estavam presentes em seu programa O Aprendiz: classificando pessoas, coisas e políticas em categorias muito simplistas, dividindo o mundo entre vencedores e perdedores, questionando as pessoas individualmente e destacando suas supostas fraquezas. Não foi assim que Trump agiu em relação ao discurso da bispa de Nova Iorque Mariann Edgar Budde, buscando, como no programa, desqualificá-la como pessoa, como mulher e como líder religiosa?
Trump só conquistou seu segundo mandato porque se beneficiou da experiência de onze anos diante das câmeras de O Aprendiz. Mais do que um empresário, Trump quer ser um ator e aprendeu para isso a dominar as capacidades de comunicação com seus eleitores. A jornalista Bia Abramo (FSP, 29/8/2004) dizia do programa que O Aprendiz ria do mundo do trabalho. Se O Aprendiz falava de um mundo que estava “de pernas para o ar”, como diz Abramo, o seu sucesso estava em contar com aquele que era “a encarnação mais perfeita do espírito capitalista”. Ela diz: “Ele é um bilionário de filme, de HQ, de TV – de ficção, enfim. Seu império, ao contrário dos bilhões discretos e cinza-monitor de Bill Gates, reluz. Tudo acontece a partir de sua dourada Trump Tower, edifício no centro de Manhattan, ainda a vitrine do capitalismo. Ele tem cassinos, hotéis e resorts em cidades cheias de néon como Atlantic City e Las Vegas. Ostenta suas limusines, jatos e acordos de divórcio cheios de números. Sente-se como um peixe dentro d’água na TV.” O Aprendiz é o delírio capitalista em forma de programa de televisão, como o novo governo de Trump quer ser o delírio político em forma de governo. Se no primeiro, os candidatos se submetem a uma encenação do mundo hipercompetitivo do trabalho, na versão O Aprendiz Casa Branca, Trump quer que o mundo se submeta a sua encenação hipercompetitiva da política: e dá-lhe ameaças ao Canal do Panamá, ao México e a Groenlândia, evocando o mesmo sentimento de revolta que a produziu no público seu programa O Aprendiz, “a verdade que “O Aprendiz” quer dizer é que aquilo tudo – a dureza, a crueldade, o estresse, a humilhação – é fichinha perto do que, no fundo, o mundo corporativo exige de seus trabalhadores”, diz Abramo. Da mesma forma, a política sob o domínio do capital, seu equivalente no governo, se transforma em imperialismo, fim dos direitos humanos e conquistas sociais.
Ao contrário do que diz Abramo do programa, essa espécie de chacota do mundo corporativo, o Aprendiz Casa Branca não é produto de um mundo se esfacelando, ele é agente privilegiado agora para o esfacelamento do mundo. A vulgaridade que Trump representa causa mais danos no mundo real do que no mundo da mídia televisiva de O Aprendiz. Talvez o erro seja que estamos tratando Trump como um homem, como um capitalista, quando ele é uma marca. Homem-marca que levou a criação de versões de seu programa em mais de vinte países e lucrou com isso – houve uma versão da Record no Brasil – foi na verdade parte de um estratagema: não nos demos conta de que tais programas também serviam para alavancar seus apresentadores na política em seus respectivos países: João Dória no Brasil, Harry Harkimo na Finlândia, este último que também apontava o dedo e gritava “Sa saat potkut!” — “Você está fora!” em finlandês.
Essa tendência de apresentadores-políticos, que tem em Luciano Huck o eterno candidato, é relacionada com o desencanto dos eleitores com a política. Mas eles são sempre não políticos que cultivam fama e que, dotados de autenticidade, como bom moço, no caso de Luciano Huck ou bad boy, no caso de Trump, se candidatam à política. Agora, no Aprendiz: Casa Branca, os candidatos são substituídos pelos países, o hotel em que viviam é substituído pelo planeta. Como na edição 6ª de O Aprendiz, que separou os vencedores em uma mansão em Los Angeles e os perdedores em um acampamento no quintal da mansão, Trump separa os Estados Unidos do restante do mundo. Quando Trump diz que não precisa da América Latina e nem do Brasil, é como se nos colocasse no fundo do quintal americano. Ao transformar as relações de política e da economia internacional em reality show, Trump vê os países discutirem o destino das relações internacionais com o império americano. Ele deve rir disso, já que os países, como os candidatos de O Aprendiz, parecem ficar à espera de uma recompensa. Faltam apenas as lideranças se reunirem em sua Sala de Reuniões, agora transformada em Salão Oval, o mesmo construído em 1909 pelo Presidente William Howard Taft como parte da expansão da Ala Oeste da Casa Branca, para receberem o sonoro “você está despedido”.
Com suas promessas de protecionismo que os demais países aguardam se efetivarem, é como se Trump estivesse estabelecendo seu processo de eliminação dos países do planeta. Para Trump, todo o planeta é perdedor, e ele vê a China como o que mais contribui para a derrota. Qual derrota? Do capitalismo americano, do fracasso comercial frente ao país asiático de que é incapaz silenciosamente de aceitar. Em seu Aprendiz Casa Branca, como nos anteriores, suas atitudes são escolher o que acontece no mundo americano; já não existe o universo LGBT+ nos EUA, apenas o masculino e o feminino, e ele tentou, sem sucesso, barrar a cidadania americana no caso de nascimento de filhos de imigrantes. Se pudesse, reuniria todos os seus fantasmas na Sala Oval e os demitiria a todos, inclusive a líder espiritual de Nova Iorque.
Vitor de Carvalho, entretanto, assinala um ponto dos bastidores de O Aprendiz que é interessante para entender este Aprendiz Casa Branca. Em “O Aprendiz”, diz que Donald Trump “demitia” os participantes aleatoriamente”, Carvalho cita reportagem do New Yorker em que o editor Jonathan Braun, que trabalhou nas seis primeiras temporadas de O Aprendiz, contou que Donald Trump não tinha critérios de avaliação dos participantes, “escolhendo quem seria “demitido” aleatoriamente.” Pensamos que existe em algum lugar uma racionalidade que explique o comportamento de Trump, mas ele é isso mesmo, a irracionalidade perversa do capitalismo em estado bruto que se diverte com o pânico dos participantes. “Naturalmente, imaginava-se que a permanência dos participantes dependia de sua eficiência nos desafios que eram estipulados, mas parece que este não era o caso, já que Trump simplesmente escolhia quem gostava menos para eliminar”. Braun dizia que a produtora de O Aprendiz, Katherine Walker, precisava editar o programa: “O programa precisava ser editado para parecer mais coerente. Tenho certeza de que Donald pensava que jamais seria editado”, admitiu. ”E completa: “era uma espécie de “engenharia reversa”: ainda que o concorrente eliminado tivesse bom desempenho nos desafios, ele acabava sendo eliminado por Trump, forçando os editores a encontrar maneiras de manipular as gravações de modo que parecesse que tivesse feito algo de errado.”
Em parte, estas características aparecem em O Aprendiz, o Filme (2024). Na crítica de Fernando Campos, Trump é o signo equivalente do homem de sucesso capitalista e sonho do liberalismo econômico. No filme de Ali Abbasi, a história de ascensão é feita como crítica ao sistema que celebra. Diz Campos: “A obra narra o início da carreira imobiliária de Donald Trump (Sebastian Stan), impulsionada por sua relação com o advogado Roy Cohn (Jeremy Strong). Enquanto Trump aprende os meandros do poder com seu mentor, ele também busca conquistar Ivana (Maria Bakalova) por quem está apaixonado. No entanto, mais do que um relato biográfico, o filme é uma reflexão sobre o que essa ascensão de Trump revela sobre o sistema político e econômico dos Estados Unidos.” Aqui, o equivalente notável é que a trajetória de Trump é a da política americana, a construção de uma posição predatória de mercado, de como os “Estados Unidos moldam o mercado global a seu favor, impondo sanções e ignorando regras internacionais quando lhes convém.”
Os Estados Unidos, a refletir o que se passa no filme, elegeram um tirano como presidente. E só podia ser Trump porque ele encarna o símbolo do capitalismo desenfreado, o desejo secreto de acúmulo de riquezas às custas dos outros, a total falta de escrúpulos do capital. Se compararmos, os figurinos extravagantes do filme são substituídos pelas atitudes extravagantes de governo; se o filme quer mostrar a passagem de um Trump jovem e humano para um Trump maduro de comportamento sociopata, a realidade do início de 2025 nos Estados Unidos é o início da sociopatia na política, com as medidas perversas do presidente para tudo e para todos. A última, ainda quando este texto era escrito (24/1), a do tratamento dado a presos transexuais, provocou repercussões de autoridades de direitos humanos. O Aprendiz Casa Branca é pior que O Aprendiz porque mostra o capitalismo mais selvagem chegando ao poder, e toda a geração de extrema direita americana que o apoia. Diz Carvalho: “Abbasi não se contenta em apresentar a obra apenas como uma biografia. O filme é uma análise incisiva do pensamento da extrema-direita, encapsulado em um personagem que personifica o extremismo em todas as suas formas. Trump, como o filme sugere, é o produto final de um sistema que celebra a ambição desmedida e a destruição como métodos de ascensão.”
De onde essa “ambição” de que fala Carvalho tira sua força? Álvaro Soler Martínez, em “O desejo pós-capitalista, segundo Mark Fisher”, resume aspectos desta obra deste autor que está em pré-lançamento pela Autonomia Literária. Fisher, que tem publicado no Brasil Realismo Capitalista (Autonomia Literária, 2020), é um notável pensador que ajuda a entender como funciona Trump no imaginário americano. É que Fisher teorizou como o capitalismo manipula nosso desejo para neutralizar nossas alternativas políticas. Ele queria que o prazer de viver retornasse pela luta de classes, mas se deu conta de que há forças externas que nos afetam e que impedem isso porque são “onipresentes, tentaculares e visíveis nos aparatos culturais da sociedade capitalista. Ligamos a televisão e um anúncio de alarmes contra roubo nos diz que a compra desse dispositivo nos trará segurança. Mudamos de canal e somos informados, em uma das dezenas de programas conservadores de entrevistas, que a imigração é um desafio ou, pior, uma ameaça que devemos enfrentar. Nossa identidade está em jogo, nosso bem-estar, quem somos ou o que achamos que somos.”
Em Desejo Pós-Capitalista, Mark Fisher aponta as estratégias da direita conservadora, a mesma que também levou Trump ao poder, explicando o contexto e oferecendo sugestões de luta contra ela. A primeira relação do texto de Fisher com a eleição de Trump está no fato de apontar que ele soube trabalhar o ressentimento da classe trabalhadora americana. O tema já foi abordado para Maria Lucia Kehl em Ressentimento (Boitempo, 2023) onde a psicanalista aponta para o fato de que, ao contrário do que se imagina, o ressentimento não é um conceito da psicanálise. “O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações imaginárias próprias do individualismo e os mecanismos de defesa do eu a serviço do narcisismo. A lógica do ressentimento privilegia o indivíduo em detrimento do sujeito e contribui para sustentar nele uma integridade narcísica que independe do sucesso de seus empreendimentos. Adianto a hipótese de que a versão imaginária da falta, no ressentimento, é interpretada como prejuízo. Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer.”
Fisher vai mais além porque afirma que a cultura neoliberal cultiva uma autopercepção reacionária de identidade com base no ressentimento. Como falsa consciência de classe, nos termos de Georg Simmel, descreve-se como um mecanismo de construção subjetiva da alteridade. A chave de Fisher está em apontar que estigma, incompreensão, ódio e medo são usados contra nós na cultura capitalista. “Assim, acabamos percebendo como inimigos em potencial o trabalhador imigrante, o movimento feminista, o movimento antirracista e os movimentos sociais ligados a minorias historicamente oprimidas. Esses últimos são fundamentais para entender por que os discursos neofascistas estão avançando tão rapidamente entre a classe trabalhadora, estimulados pelas redes sociais, pela televisão, pelo cinema e pela literatura: individualismo, machismo, racismo, masculinidade, glorificação da violência e militarismo estão se aninhando cada vez mais nas fileiras dos trabalhadores, cada vez mais jovens.” Não exatamente estes os valores cultivados por Donald Trump logo nos primeiros atos de sua administração?
Para Martinez, a chave da derrota da esquerda está no modo como se construiu a hegemonia neoliberal. Sua conclusão é que o sistema social capitalista capturou o desejo. E essa captura é cultural. Eliot Weinberg descreve melhor essa captura feita por Trump nessa lógica: “O futuro presidente atualmente vende bonés, papel de embrulho, cobertores, uniformes de futebol, bandeiras de barco, raquetes de pickleball, colares, brincos, gravatas de seda, tábuas de cortar, decorações de Natal, chinelos, prendedores de gravata, tapetes, aventais, pijamas, meias, calendários do Advento, meias de Natal, canecas, chaveiros, agasalhos, blocos de anotação, pulseiras, velas perfumadas, sacos de praia, chinelos de dedo, roupões de banho, toalhas, óculos de sol, saca-rolhas, garrafas d’água, adesivos, calças de jogging, copos de vinho e champanhe, fones de ouvido, casacos, doces, biscoitos, chocolates, mel, caixas de jóias, decantadores de uísque, tabuleiros, carteiras, frascos, vinhos, bases para copos, guarda-chuvas, sacos de golfe, pratos, cinzeiros, sutiãs para esportes e guias para cães – tudo com seu nome.Também estão disponíveis um relógio de ouro por 100.000 dólares, uma guitarra autografada por 11.000 dólares, cartões digitais NFTs com o futuro presidente em cenas históricas heróicas, Bíblias “God Bless the USA” [Deus abençoe os EUA”], tênis de cano alto “Never Surrender” [“Nunca se renda”], colônia para homens “Fight Fight Fight” [“Lute, lute, lute”] (“Para patriotas que nunca recuam”) e uma colônia comemorativa “Victory Cologne” [“Colônia da vitória”], que vem num frasco com o formato da cabeça do futuro presidente.”
Para o americano que votou em Trump, isso mostra exatamente como o candidato capturou o desejo americano, o que não pode ser compreendido sem os mecanismos de mercado que o acompanham. Trump é sinônimo de… mercadoria, uma marca desejada pelo proletariado de direita completamente mercantilizado, incorporado à lógica mercantil. Diz Martinez: “Como Fisher adverte nesse mesmo livro, com referência ao filósofo marxista Georg Lukács: “Para ver as coisas como externas a nós, não podemos estar nelas” (Fisher: 180)”. Por isso, a Era Trump começa com um grande processo de alienação, com medidas que vão contra a conquista de direitos, que anulam a consciência de classe conquistada por americanos e por todos os cidadãos do mundo. Claro que, até este texto ser publicado, muita coisa pode mudar, como é na praxe de avanços e recuos da extrema direita que Bolsonaro conhece bem. Trump é o mestre da colonização do desejo americano, para quem não há outro desejo além do capitalismo. Ele reforça a forma como se pensa e sente o desejo coletivo capitalista. Fischer sugere que Trump manipule o desejo da classe dominante como se fosse o de toda a sociedade. Ele vem colonizando o sonho americano desde seu programa de televisão e, com sua indústria, tornou-se uma marca que é o desejo americano.
Trump trabalha primeiro o ressentimento contra os não americanos nos EUA, e em segundo lugar contra o mundo inteiro com sua consciência anticlasse, sua identidade rígida (somente homens e mulheres) e racialismo usado pelo neoliberalismo. A Era Trump inicia com o presidente moldando seu mundo à maneira da mentalidade de O Aprendiz, o que significa moldar, manipular e instrumentalizar o mundo, não por meio da publicidade, mas pelo poder do decreto. As estratégias de mídia voltam-se para a cultura política. A lógica do capitalismo, que reduz tudo a mercadoria, a coisa, tem chance de chegar ao governo do topo do mundo: diz Martinez que para Fisher “o desejo capitalista é tão forte que é muito difícil avançar politicamente na direção do pós-capitalismo, porque tudo está impregnado desse fetiche comercializado do capitalismo. Ou seja, tudo é atravessado pela lógica produtiva, econômica e comercial do capitalismo.”
Contra a máquina neoliberal posta em funcionamento por Trump, Fisher sugere recuperar as expressões culturais alternativas. Frente ao pensamento único, a forma de luta é propor “novas alternativas de pensamento, ação e transformação da realidade”. Martinez vê Fisher como aquele que criticou a maquinaria neoliberal ao defini-la como um parasita “que, pouco a pouco, esvazia a vítima de seu conteúdo interno, deixando apenas a carcaça, enquanto a larva do capital dorme saciada atrás da casca.” Esse é o lugar exato para definir Trump: se deixado livre, ele explorará de tal forma o mundo que só restará apenas uma carcaça sem conteúdo, exatamente porque seu único objetivo é a predação, é parasitar as economias que se relacionam com ele. Martinez diz que Fisher também critica a colonização e mercantilização dos movimentos antirracistas que deixaram de ser críticos para se tornarem “meras mercadorias neoliberais que sustentam o sistema”. É nesse sentido, por exemplo, os debates atuais da esquerda no Brasil sobre o papel das forças políticas baseadas no identitarismo. Tanto lá como aqui, entendo que Fischer aponta que colaboraram também para a derrota da esquerda e que precisam voltar a possuir um lugar na luta de classe.
Fisher exige que se reivindique novas formas de pensamento e desejo. Diz Martinez que Fisher imagina “um novo rearmamento ideológico desvinculado do círculo vicioso que o capital constantemente projeta para nós como natural, imediato e normalizado”. A hipótese que o autor já desenvolveu em sua obra Realismo Capitalista (Autonomia Literária, 2020) retorna em seu novo livro: agora, “a realidade é o capitalismo e o capitalismo é a realidade, não é mesmo? Não há alternativa.” Para Fischer, esse é o pensamento imaginário coletivo e, no meu entendimento, fica claro que é dele que Trump se alimenta, verdadeira “ideologia do inamovível”. O realismo capitalista que Trump representa, nos dizeres de Fisher, é uma restrição ideológica, pensamento que diz que não se pode pensar fora do capital defendido pelo presidente.
A conclusão é que, se o capitalismo adoece e provoca depressão, e se ele é a lógica pela qual se dirige um Estado, ele se torna um sintoma político coletivo doentio. Em breve, todo o planeta estará doente. Martinez lembra que Fisher diz: “Há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a responsabilização. Todos os membros das classes baixas são levados a acreditar que a pobreza, a falta de oportunidade ou o desemprego são culpa deles, e de mais ninguém. As pessoas se culparão em vez de culparem as estruturas sociais, que, da mesma forma, foram levadas a acreditar que não existem de fato”, diz Fischer em seu livro Fantasmas da minha vida (Autonomia Literária, 2022). Agora, resta à esquerda afirmar que a culpa também será da política. Diz Martinez que Fisher abre com um bisturi preciso todas aquelas pequenas metástases que destroem a nossa consciência, o que sugere que, frente ao Trumpismo, ao “você está despedido”, por sua vez, também possa ser aberta uma estrada reta e acessível para a reação, a luta interna, contra a desorientação frente ao fascismo”, sistema que deixa todos deprimidos. Fisher tinha também depressão e suicidou-se em 13 de janeiro de 2017.
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Foto da Capa: David/Flickr, CC BY-SA