Uma história bastante antiga que circula por aí é que a muralha da China, a maior estrutura militar de defesa existente no mundo, com seus 8.850 quilômetros de extensão, 7,5 metros de largura média e mais de três metros de altura seria visível a olho nu do espaço. No meu caso particular, essa não foi uma informação que me chegou pelo WhatsApp, mas sim foi compartilhada por um professor em sala de aula em algum momento entre 1989 e 1990. Logo, assim como muita gente, eu também arquivei essa informação na categoria “verdade factual” e segui minha vida.
Só muitos anos depois fui confrontado com informações contrárias ou céticas a esse mito espacial específico. O maior argumento para fazer você manter uma atitude desconfiada é que essa história pode ser traçada com alguma exatidão no mínimo até publicações impressas dos anos 1930 – quando ninguém havia ainda ido ao espaço para comprovar por si mesmo. Aliás, quando o primeiro astronauta chinês, Yang Liwei, de fato chegou ao espaço, no início dos anos 2000, e finalmente esteve em posição de olhar e ver, confessou não ter visto nada da monumental estrutura. Na China em particular, a revelação foi recebida com uma certa decepção, uma vez que a informação, motivada por ufanismo patriótico (qualquer um que more no Rio Grande do Sul sabe que isso não é exclusividade da China) consta até mesmo de livros-texto em escolas.
Em uma das minhas canções preferidas do Pink Floyd, Brain Damage, do álbum conceitual Dark Side of the Moon (a ideia de que a Lua tenha um permanente “lado escuro” é outro mito científico, aliás), Rogers Water escreve primeiro que “o lunático está no gramado”, depois que “está na sala” (pode ser “no saguão”, também), depois diz que “os lunáticos na sala” são as fotos de gente hedionda nas páginas dos jornais, depois o sujeito-personagem da letra em primeira pessoa confessa, numa reviravolta realmente tocante, que o lunático está na sua própria cabeça.
Waters em sua canção usa a palavra “lunático” no sentido mais clássico possível (embora imagino que hoje não seja politicamente correto), escavando nessa música correlações bastante antigas entre a influência da Lua sobre indivíduos com doenças mentais. Uma relação que se expressa na própria etimologia em que “lunático” deriva do latim /lunaticus/ e a lua também se faz presente na descrição de estados de delírio, como alucinação, ou de confusão, como quando se diz que alguém é um “aluado”. Embora essa relação seja, na melhor das hipóteses, anedótica, já foi ciência empírica referendada em obras respeitadas. Aristóteles, Plínio (o Velho), Ptolomeu, nomes que formaram a base do pensamento “científico” ocidental por uns vinte séculos referiam-se à hipótese de que a proximidade da Lua, cujo efeito sobre as marés já era bem conhecido, também desestabilizaria as partes “úmidas” e a água elemental do corpo humano, provocando desvios de comportamento. Quando usei “uns vinte séculos na frase anterior, não estava exagerando. Shakespeare, no fim do século XVI, faz Otelo justificar, na Cena II do quinto ato da peça, a violência que se espalha na esteira de seu ciúme homicida: “É o efeito do desvio da lua; ela aproxima-se agora mais da terra do que de hábito, e deixa os homens loucos”
A ciência evoluiu o bastante para desacreditar a teoria dos “quatro elementos”, mas uma nova verdade científica acabou por substituir sutilmente a anterior sem que ninguém desse por isso. Ainda hoje aqui e ali se defende, inclusive no seio dessa tribo intrigante que é o misticismo namastê, que, sendo o corpo composto em sua maior parte de água, é “inevitável” que a Lua exerça nesse corpo o mesmo efeito de atração das marés. O que é uma tremenda bobagem. Vários estudos científicos realizados por vários pesquisadores diferentes em anos recentes tentaram comprovar a existência de um padrão direto entre variações das fases lunares e o real comportamento de pacientes psiquiátricos graves. Nada emergiu como um padrão claro e a maioria dos resultados supostamente positivos não se sustenta ou é replicável após tentativas de reprodução.
Mais uma, rapidinho. Essa eu me lembro de ter lido em toda parte quando eu era guri: animais enxergam apenas em preto e branco. Não é verdade. Cachorros, por exemplo, enxergam uma variedade menor de cores, especialmente amarelo e azul, e não há consenso sobre que interpretação o cérebro desses animais faz desse conceito (uma vez que a visão é menos aguçada nesses animais do que o olfato, por exemplo, embora eles ainda enxerguem melhor que os humanos, especialmente à noite).
Almanaques
Nos três casos, temos informações que ganharam status de “verdade” no senso comum simplesmente porque circulam há muito tempo e muitas vezes aparecem respaldadas por fontes de alguma credibilidade. Já foram publicadas em livros escolares, em textos antigos, em revistas de curiosidades científicas para o grande público e naquele tipo de publicação que, antes de havermos avançado tanto no uso da internet do WhatsApp, representava o suprassumo da ferramenta de difusão de noções e conceitos equivocados de fonte duvidosa, o Almanaque.
Pra vocês que são jovens e não lembram, Almanaques foram algumas das publicações mais populares da história gráfica do Brasil. Sua origem, de acordo com o historiador Jacques Le Goff em seu livro História e Memória, é anterior à invenção da imprensa (a própria palavra tem uma etimologia árabe de significado não consensual), mas atinge o apogeu em termos de popularidade e já estabelece bem cedo a forma com que se tornaria conhecido. Eram publicações periódicas (a maioria anuais, algumas com periodicidade mais frequente) que traziam, além de um calendário completo do ano, incluindo muitas vezes informações úteis sobre safras, etapas de plantio etc., curiosidades informativas, charges e caricaturas a título de entretenimento. As curiosidades podiam ter a forma de verbetes de um “calendário cívico” ou de notícias exóticas do momento, além de curiosidades “históricas” baseado nos calendários.
“O calendário, órgão de um tempo que recomeça sempre, conduz paradoxalmente à instituição de uma história cronológica dos acontecimentos. À data, ao ano e possivelmente também ao mês e ao dia agarram-se os acontecimentos. No livro-almanaque europeu e sobretudo francês, a partir do século XVII e sobretudo do século XVIII, a história toma-se cada vez mais importante, interrompendo ‘a monotonia das predições astrológicas'”, escreve Le Goff.
Normalmente, os almanaques eram patrocinados por casas comerciais que aproveitavam a ocasião para associar seu nome ao caráter eminentemente útil e pragmático de uma publicação como essa, como farmácias, produtos agrícolas, livrarias. O Museu Hipólito José da Costa, aliás, tem um acervo muito bom de almanaques
A questão é que essa era parte “recreativa” havia sido criada especificamente para dar o “sabor” e a “graça” a uma publicação de tom prático. Como já disse um autor que escreve melhor do que eu em uma singela fábula na qual faz o elogio desse tipo de entretenimento:
“O Tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem margens, sem nada; tão-somente os dias, as semanas, os meses e os anos. Um dia, ao amanhecer, toda a terra viu cair do céu uma chuva de folhetos; creram a princípio que era geada de nova espécie, depois, vendo que não, correram todos assustados; afinal, um mais animoso pegou de um dos folhetos, outros fizeram a mesma coisa, leram e entenderam. O almanaque trazia a língua das cidades e dos campos em que caía.(…) Assim as semanas, assim os meses, assim os anos. E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida”, escreveu Machado de Assis em “Como se Inventaram os Almanaques”.
Os almanaques também deram origem, a partir principalmente da ascensão de um divórcio radical entre a cultura “popular” e a “erudita” à expressão algo pedante “cultura de almanaque”, para definir um fenômeno que, criticado à época, é basicamente o cotidiano de hoje: informações e anedotas sem contexto veiculadas como entretenimento e tendo muitas vezes como fonte outras publicações semelhantes que já as fizeram circular sem esmiuçar suas origens. Um tipo de maçaroca que, como diz Le Goff em seu livro, mistura “a grande e a pequena história, segundo uma lógica que os historiadores de hoje recusam”.
Um pouco menos prestigiado pelo declínio do impresso gráfico como veículo de mídia no mundo contemporâneo, o almanaque, contudo, continua vivo em espírito e forma. Em espírito porque como o próprio Le Goff já comentava em seu livro de 1996, “em particular, os calendários e os almanaques veiculam, conservam e difundem um saber de tipo astrológico, que nas sociedades evoluídas atuais conhece um novo e extraordinário sucesso. O calendário zodiacal volta a ter o seu auge: os horóscopos instituem-se, propagam-se e têm uma enorme saída”. Em forma porque, como publicações que fazem da informação episódica a pílula açucarada de uma publicação voltada a dados úteis para o cotidiano, instaurou-se um curioso parentesco entre o que o almanaque foi e o que o mundo online é: compartilhamento de informações sem contexto, em que o “discurso” é minimizado ou mesmo negado pelo caráter episódico e “curioso” de muitas informações tidas como certas simplesmente porque já foram repetidas em outro lugar.
Empirismo ou apriorismo
Parte essencial do conhecimento filosófico, sobre o qual já escreveram literais montanhas de páginas, é o campo da epistemologia, o que podemos saber, por que meios, e mesmo se o conhecimento é possível ou uma ilusão sustentada por interpolações do intelecto. Parte não pequena desse debate é aquele que há séculos opõe empirismo e apriorismo (ou racionalismo). As ramificações e implicações filosóficas profundas continuarão sendo debatidas, mas, como ocorre com outros ramos da ciência e do pensamento, em algum momento todos nós precisamos navegar no mar da vida usando como bússola alguma espécie de sumário pessoal entre essas postulações. Se tomarmos por certo que só sabemos o que testemunhamos, sabemos muito, mas muito pouco do mundo. Se levarmos o critério da experiência direta ao limite, não temos sequer certeza da lei da gravidade, porque foram os outros que caíram e morreram ao saltar do 10º andar, não nós mesmos. Claro, aí entra o pragmatismo cotidiano de que falei. Muita coisa se “sabe” por experiência indireta pelo que está calcificado na cultura e na mentalidade a nosso redor – o que significa que não apenas temos o conhecimento de nosso tempo, como o fato de a Terra ser redonda e a gravidade ser um fato, como também ainda carregamos os preconceitos de nossa época, alguns bem declarados. Outros, vão ficar mais claro daqui a uns 200 anos – espero – quando nossos descendentes analisarem nossa história e o que escrevemos sobre ela (na hipótese otimista de que estejam em condições de fazer isso e não reciclando a própria urina em um bunker antirradiação, o que hoje parece bem provável).
Só que, pelo que ensinam os exemplos da cultura “de almanaque”, o empirismo, se não é uma medida definitiva, deveria ser um sinal de alerta. Muito do que sabemos nos chegou por outras fontes. E até mesmo as mais credenciadas poderiam estar equivocadas ou acreditarem em coisas que se comprovaram hoje falsas – diabos, se isso vale até para material escolar, por que você acreditaria cegamente em qualquer informação transmitida por um tenente aposentado qualquer no seu grupo da família?
Sabemos pouco por conhecimento direto. Lembramos pouco do que lemos, o que nos chega de informação é fragmentado. A contemporaneidade consagrou o modelo de conhecimento rizomático por hiperlink, em que uma coisa liga a outra e a outra e a outra e assim por diante, em saltos de rã que é apropriadamente chamado de “navegação”, e não de “mergulho”. Não há uma fórmula para isso a não ser a constante desconfiança não apenas de uma informação sem fontes, mas da forma como ela é automaticamente recebida. Se de algum modo uma informação nova parece confirmar seus grandes preconceitos, você não deveria se sentir legitimado, e sim desconfiado.
Porque no fim das contas, a grande desconfiança que todos temos menos do que deveríamos é o simancol de perceber que falamos muita bobagem.
Foto da Capa: Boris Ulzibat / Pexels