Nem tudo o que parece é. O título do artigo é provocador. A resposta para a pergunta contida no título seria sim para maioria dos questionados. Os porto-alegrenses costumam chamar erroneamente o equipamento cultural existente na extremidade oeste da ponta onde está a região central da cidade, na orla do Guaíba, junto da Avenida Presidente João Goulart, quando essa se encontra com o final da Rua dos Andradas (chamada popularmente de Rua da Praia), de Centro Cultural Usina do Gasômetro.
Aliás, até o seu endereço é controverso. Na internet, se o leitor procura, encontrará vários. Consta desde a Rua General Salustiano, número 21, passando por Avenida Presidente João Goulart, números 353 (no site arteforadomuseu) e 551 (nos sites minube e tripadvisor), até Largo do Trabalho, número 46, Cais do Porto (na wikipedia). Oficialmente, o último endereço citado é o que vigora. No site do IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado), na lista dos bens culturais tombados pelo Governo do Estado, consta a direção da então usina termoelétrica que funcionou naquele lugar e cujos remanescentes externos ainda são encontrados na face voltada para a Rua General Salustiano. Hoje a Avenida Presidente João Goulart secciona o terreno original do imóvel.
O local nunca foi um gasômetro. Isto confunde o público. É necessário esclarecer as pessoas. Este é o objetivo do artigo.
Porto Alegre surgiu voltada para o lado noroeste da ponta na qual foi inicialmente povoada. As condições geográficas adequadas em termos de orientação solar, topográficas, de proteção e de adequação para atracar navios, definiu a sua implantação. Na pacata cidade que chegaria até o último quartel do século XIX, apesar de já ter sido loteada para os lados sudoeste e sul, na região central, nada de grande relevância se localizava nessas direções. Na Praia do Riacho, depois denominada de Rua da Margem, posteriormente de Rua Pantaleão Teles, e atualmente chamada de Rua Washington Luiz, as imagens mais antigas remetem à prática da lavagem de roupas no Guaíba.
Em 1874, na então Rua da Margem, entre a Rua General Salustiano e próximo da embocadura da Rua Vasco Alves, foi implantada uma usina para gerar gás-hidrogênio-carbonado, chamada na época de Gasômetro. No mapa de 1881, elaborado pelo engenheiro Henrique Breton, onde constam os primeiros aterros para implantar novos espaços e equipamentos públicos, aparecem como novidades o Gasômetro, a nova Casa de Correção, a Praça Martins de Lima e a Rua Sete de Setembro.
Abrindo um parêntesis, a Casa de Correção, foi construída entre 1852 e 1855, pelo governo provincial. Seu projeto é de autoria do engenheiro-arquiteto alemão Johann Friedrich Heydtmann (1802-1876). Ela estava delimitada em suas laterais com o alinhamento das ruas Riachuelo e Duque de Caxias, na margem do Guaíba, ao lado do local em que posteriormente foi edificado o prédio que abriga o centro cultural que intitula este artigo. Foi demolida na administração de Leonel de Moura Brizola (1922-2004).
A Praça Martins de Lima, surgiu de aterro realizado na Praia do Arsenal – denominação relacionada com as atividades vizinhas exercidas pelo Exército e pela Marinha – que Sérgio da Costa Franco esclarece ter sido “local ermo e de mau aspecto nos primórdios da Vila, que primeiro se assinalou por hospedar a forca na ocasião das execuções de condenados à morte. Foi por isso conhecida como Largo da Forca” (FRANCO, 2018, p. 358). Inaugurada com a designação inicial de Praça da Harmonia, em 1858, recebeu um cais e um chafariz. Poucos anos depois, em 1861, estava arruinada. Sua recuperação se deu por iniciativa do vereador Martins de Lima, ocasião em que recebeu quase uma centena de árvores que a tornaram um atrativo local de lazer. Quando da morte deste, em 16 de dezembro de 1878, a praça passou a se chamar pelo nome do edil, como consta no mapa de 1881. Para construir o novo Cais Mauá, a partir de 1920, serviu de canteiro de obras, nela erguendo-se os galpões necessários. Em um decreto de novembro de 1930, Alberto Bins (1869-1957) mudou a nomeação de Praça Martins de Lima para Praça 3 de Outubro, homenageando a revolução recente. De nada adiantou a atitude do prefeito pois, mesmo depois de concluído o novo cais, no local, permaneceram os galpões, ocupados por militares e pelo Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem. Uma intensa campanha encabeçada pelos vereadores e pela imprensa, fez com que em 14 de julho de 1965, se restaurasse o nome do local como Praça da Harmonia. Isto sensibilizou o Exército, que enfim se retirou do local, atitude que fora tomada anteriormente pelos órgãos estaduais. Menor em sua área, pela construção do novo Cais, e menos bela se comparada com suas feições anteriores, voltou a ser um logradouro público, agora com a denominação de Praça Brigadeiro Sampaio, homenageando Antônio Sampaio (1810-1866), mantendo ainda remanescentes dos galpões, no final da Rua dos Andradas, que mais adiante se tornariam sede do Museu do Trabalho.
Para fechar este amplo parêntesis, com a explicação sobre os aterros realizados até 1881, cabe destacar também o surgimento da Rua Sete de Setembro, situada entre a Rua General Portinho (na Praça Brigadeiro Sampaio, na frente da estátua de Antônio Sampaio, que para ela se volta, e a Rua do Comércio, hoje Uruguai). Não foi gratuita a nomeação popular de Rua da Praia para a Rua dos Andradas. Inicialmente margeava o Guaíba. Com os novos aterros, a borda original mudou, ocasião em que foi traçada a Rua Sete de Setembro. Em quase toda a extensão, o lado da Sete de Setembro voltado para o Guaíba recebeu cais e trapiches, destacando-se o cais da Praça da Alfândega, este, aliás, reconstruído em 1858, e cujos remanescentes estiveram postos em evidência em escavações recentes.
Começaram assim as radicais transformações efetuadas no trecho que vai desde o Centro de Treinamento do Grêmio de Futebol Porto-alegrense Presidente Luiz Carvalho, homenagem ao ex-atleta, treinador e dirigente cachoeirense Luiz Leão de Carvalho (1907-1985), inaugurado em 2014, na frente da Arena, na Rua João Moreira Maciel, número 1000, Bairro Farrapos, zona norte, até o Bairro Assunção, na zona sul. Mais de um século passou para que se conformasse a paisagem da orla que o leitor hoje contempla.
A primeira pergunta que cabe ser feita. Qual o motivo para implantar um gasômetro na cidade?
No dia 10 de janeiro de 1867, foi aprovada uma lei provincial autorizando contratar a iluminação pública das cidades de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande pelo sistema de gás hidrogênio-carbonado. Venceu a concorrência o vice-cônsul francês, Noël Paul Baptiste d’Ornano (1824-?), que conseguiu na Inglaterra o capital necessário para constituir a empresa São Pedro Gaz Company Limited, em Londres, em 26 de novembro de 1870. O sistema levou quase quatro anos para entrar em funcionamento, em 4 de novembro de 1874. Dentre os empecilhos iniciais a dificuldade de conseguir a concessão pela Câmara Municipal do terreno na área da Praia do Riacho, onde finalmente a usina se instalou.
Esta empresa foi sucedida pela Companhia Riograndense de Iluminação a Gás, que ofereceu gás para iluminação pública e para fornecimento a moradias particulares, até 1909.
A Lei Provincial número 1785, de 4 de abril de 1889, concedeu ao boticário e comerciante francês Aimable Jouvin a autorização para explorar a distribuição de energia elétrica por duas décadas nas cidades e vilas da província. Ele conseguiu implantar em poucos lugares, dentre eles, Porto Alegre, onde estimulou a criação da Companhia Fiat Lux, em 1891. Sua geradora foi instalada na Rua General João Manoel, esquina com a Rua Sete de Setembro.
A necessidade de atender os bairros fez com que o município inaugurasse uma nova usina elétrica na Rua Voluntários da Pátria, esquina Rua Coronel Vicente, inaugurada em 1º de agosto de 1908.
Sérgio da Costa Franco diz que no mesmo ano, uma terceira usina elétrica foi instalada para atender a demanda dos bondes elétricos, pela Companhia Força e Luz Porto-alegrense. Foi instalada na Rua Voluntários da Pátria, próxima da Rua da Conceição (Idem, p. 148).
De 1909 em diante, pela Lei número 64, de março, o gás passou a ser oferecido pela Intendência Municipal, sob a administração do engenheiro fluminense José Montaury de Aguiar Leitão (1858-1939), que reformou as obsoletas instalações, obra concluída em 1911. A empresa municipal funcionou até 1928, quando a Companhia Brasileira de Força Elétrica, subsidiária da Bond & Share, assumiu os serviços de geração e distribuição de energia elétrica na capital e a produção e distribuição de gás. Diz Costa Franco que por volta de 1930, os últimos lampiões a gás desapareceram. Permaneceu o serviço de abastecimento de gás para consumo em fogões e aquecedores, que se extinguiria com a oferta do gás liquefeito de petróleo, distribuído em botijões metálicos (Ibidem, p. 189).
Franco lembra que na década de 1920, apesar de ter três empresas para atender as demandas da capital, a situação ficou crítica. Diz ele que era “péssima a iluminação pública e particular e estrangulada a indústria pela carência de força eletromotriz” (Ibidem, p. 148). Isto fez com que o município firmasse, em 1928, contrato com a Bond and Share para fornecer a eletricidade para Porto Alegre. A Companhia Brasileira de Força Elétrica, deste grupo, adquiriu o controle acionário das companhias locais, Energia Elétrica Riograndense (que tinha absorvido a Fiat Lux) e Carris Porto-alegrense (anteriormente Companhia Força e Luz Porto-alegrense), e comprou as instalações da Usina Municipal. Para atender as demandas, construiu uma usina termoelétrica no final da Rua dos Andradas, em aterro feito ao lado da Casa de Correção, inaugurada em 11 de novembro de 1928. O carvão mineral que abastecia a empresa, vinha da região carbonífera pelo Rio Jacuí, entrava no estuário do Guaíba, sendo trazido até o cais da usina. Neste ponto, era elevado por uma estrutura metálica até a parte superior. Em esteiras, chegava nas três tremonhas que ainda hoje se destacam no interior do imóvel. Pelas tremonhas, o carvão chegava nos fornos de tijolos refratários, cujos remanescentes encontram-se no térreo do edifício, gerando energia térmica que era transformada em energia elétrica para abastecer Porto Alegre. Neste processo, um sério problema era a fuligem expelida, que causou problemas de saúde na vizinhança bem como o seu acúmulo em varais de secagem de roupas e nos interiores das residências da região. Para amenizar o problema, foi construída a chaminé de 117 metros situada ao lado, hoje um marco da paisagem da área central da cidade. A crise energética da década de 1970 e a falta de condições para atender a demanda fez com que a usina foi desativada em 1974. Abandonada, passou por rápido processo de deterioração. Além disso, foi saqueada e ameaçada de demolição.
Em 1982, a Eletrobrás, proprietária do imóvel cedeu o terreno para a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, dirigida pelo uruguaianense Guilherme Socias Vilela (1935), cuja administração ocorreu entre 1975 e 1983. Na oportunidade a intenção era passar a Avenida Perimetral pelo local.
Graças a mobilização da sociedade civil, com base no Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul (IAB/RS), o imóvel foi salvo. Naquele momento estava prevista a implosão do edifício das Lojas Renner, na Avenida Otávio Rocha esquina com a Rua Doutor Flores. Junto estava dado o mesmo destino para o prédio da Usina Termoelétrica. Sob a liderança de José Albano Volkmer (1942-2007), uma comissão de defensores do patrimônio conseguiu reverter a situação junto ao engenheiro Marcos Barth, Diretor-Geral da 15ª DR do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), encarregado do assunto da parte do governo federal, proprietário do imóvel, que foi sensível à demanda.
Neste mesmo ano o Governo do Estado tombou a chaminé e no seguinte o município tombou o prédio.
Imediatamente o Museu do Trabalho, através do sociólogo uruguaianense Marcos Flávio Soares (1946), assumiu a iniciativa de tentar viabilizar a recuperação e reutilização do prédio. Foi feito então um levantamento cadastral da edificação, elaborado pelos arquitetos e professores Adroaldo Xavier (1949) e Paulo Cesar Filho (1956), com vinte acadêmicos de arquitetura e urbanismo, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e das Faculdades Integradas Ritter dos Reis (dez estudantes de cada instituição superior de ensino). Na ocasião, a Casa do Desenho forneceu todo o apoio material para colaborar com este trabalho. O levantamento cadastral foi entregue ao bajeense, prefeito Alceu de Deus Collares (1927), cuja administração ocorreu entre 1986 e 1989.
Em 1988, iniciaram as obras de recuperação do edifício. Cogitou-se o nome da italiana Lina Bo Bardi (1914-1992) para fazer o projeto, que acabou sendo realizado por quadros da própria municipalidade. A Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre (EPAHC) era liderada pelo arquiteto Robert Levy. A intenção da administração Collares era de fazer do bem cultural a sede de um CIEP profissionalizante. A ideia partiu da pedagoga santanense e primeira-dama Neuza Canabarro (1945).
Na administração do prefeito Olívio de Oliveira Dutra (1941), decidiu-se modificar o uso a ser dado ao imóvel. Optou-se por transformar o local em um espaço cultural. Novamente surgiu o nome de Lina Bo Bardi, que contactada, negou-se a se envolver novamente com o assunto. As obras seguiram no âmbito municipal e o espaço cultural abriu no final do ano de 1991, tornando-se Centro Cultural em 1995.
Desde novembro de 2017, o equipamento está fechado para reforma. Consta que agora a administração municipal pretende privatizá-la.
Agora que o leitor sabe que o gasômetro era na Rua Washington Luiz, e que a chamada Usina do Gasômetro era uma termoelétrica, falta elucidar ainda a denominação do local como “Volta do Gasômetro”. O termo está relacionado com a curva que faz a Rua General Salustiano, no trecho entre a Rua dos Andradas e a Rua Washington Luiz, especialmente na conexão da Rua Duque de Caxias com esta última. A outra denominação ainda mais antiga era a “Ponta da Cadeia”, pela presença da Casa de Correção.
É tempo então de ser corrigida a falha. Das antigas instalações do Gasômetro, restam apenas alguns prédios remanescentes e um renque de belas palmeiras, na Washington Luiz, como frisou o saudoso Sergio da Costa Franco. Este local deve voltar a ser chamado de Gasômetro e precisa ser valorizado. Ser melhor sinalizado e explicado o seu significado. O espaço cultural abrigado na Usina Termoelétrica deve ser denominado oficialmente de Centro Cultural Usina Termoelétrica da Volta do Gasômetro, corrigindo o equivoco que causa ao cidadão que desconhece o que aqui foi tratado. E na General Salustiano, vale uma placa que explique a antiga denominação popular de Volta do Gasômetro. Porto Alegre agradeceria.
BIBLIOGRAFIA:
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: Guia Histórico. Porto Alegre: Edigal, 5ª edição, 2018.
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Foto da Capa: Vista aérea da Volta do Gasômetro ou Ponta da Cadeia, na década de 1950, com o Gasômetro, a Casa de Correção e a Usina Termoelétrica, Porto Alegre/RS. Acervo da Fototeca Sioma Breitman, Museu Joaquim José Felizardo.