Eu adoraria começar este texto citando a “famosa frase de Andy Warhol” segundo a qual, no futuro (o futuro de acordo com Andy Warhol, claro, o que teoricamente poderia até mesmo ser agora, neste 2024 eterno e cheio de turbulências), “todos serão famosos por 15 minutos”. Mas, infelizmente, eu sou meio fabulista e meio jornalista, e a parte “repórter” desta mistura não deixa eu embarcar na mitologia de consciência tranquila quando outras evidências apontam na direção contrária.
E, assim, preciso dizer que não, a frase talvez não seja de Warhol, mas teria sido a ele atribuída porque foi incluída no programa de uma exposição que ele faria em Estocolmo em 1968. O historiador da arte Olle Granath foi contratado para escrever o catálogo da exposição, e teria recebido do diretor do Museu de Arte Moderna de Estocolmo a encomenda de incluir essa frase em particular depois de o texto estar quase pronto. O autor do texto argumentou que essa frase em particular não estava nas citações que ele havia recebido para embasar seu texto, e recebeu de volta a frase: “Talvez ele não tenha dito isso, mas é algo que ele bem poderia ter dito, então vamos incluir”.
Um fotógrafo e jornalista, Nat Finkelstein, por sua vez, diz que a frase, ou melhor, a inspiração para a frase, surgiu dele, numa sessão de fotos na rua na qual Warhol e ele foram constantemente interrompidos por pessoas querendo sair nas fotos. Warhol teria comentado que “aparentemente, todo mundo quer ser famoso”. E Finkelstein teria complementado: “é, por quinze minutos”.
Logo, não tenho como dizer que, em 1968, Andy Warhol disse: “No futuro, todos serão famosos por 15 minutos”. Mas, independentemente da autoria, a frase é uma realidade cultural, meio século depois. E para os propósitos deste texto, é suficiente dizer que, seja lá quem for o seu autor, na era da Interna contemporânea talvez tenha chegado a hora de adaptá-la para “No futuro, todo mundo terá sido cancelado por uns 15 dias”
Humilhação como didática
Ao longo dos séculos, a humilhação pública foi uma punição tradicional no Ocidente. Devedores expostos na roda; criminosos e fraudadores presos pela cabeça e pelos pulsos no centro da praça, exibidos à execração pública. Muito da força de A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, vem da poderosa imagem da heroína Hester Prynne humilhada e ofendida, com seu bebê nos braços, no cadafalso da vila na Nova Inglaterra — e a extensão desse castigo ao conspícuo “A” bordado em suas roupas é o próprio norte do romance. Até que esse tipo de punição passou a ser gradativamente abolida – entre outros motivos, por seu caráter desumano e desumanizador. O que sempre me faz pensar na ironia que é vivermos hoje em um presente ultratecnológico em que essa prática parece estar sendo resgatada no tribunal em massa das redes sociais.
E agora sim chegamos ao que eu realmente queria comentar neste texto: o quanto um dos livros que melhor desenvolveram o corolário dessa questão nas últimas décadas é Humilhado: como a era da internet mudou o julgamento público, do jornalista inglês Jon Ronson (Tradução de Mariana Kohnert, Best Seller).
Ronson é um autor com uma prosa de tom particular. Em livros como Os homens que encaravam as cabras e O teste do psicopata (ambos também lançados no Brasil pela mesma editora), seu texto mescla a apuração de uma grande reportagem, o tom confessional de um escritor que apresenta o passo a passo de suas próprias pesquisas e a pegada humorística que faz piada com as dificuldades dessa pesquisa e com o fato de que as ideias preconcebidas no início do projeto precisam ser ajustadas ao longo da apuração.
Casos
Essas marcas características de estilo se repetem apenas em parte em Humilhado… — talvez pelo tom mais pesado inevitável na narrativa de pessoas arrastadas à vergonha pública, Ronson é mais contido no humor. O autor analisa episódios em que declarações infelizes ou segredos revelados na rede provocaram um aluvião de humilhação pública. Causos que hoje, a uma relativa distância no tempo, muito bem poderiam ser listados numa espécie de “museu da perda da inocência do otimismo digital”.
Um dos casos relatados no livro, como o do escritor Jonah Lehrer, autor, entre outros, de Proust era um neurocientista (curiosamente, também editado no Brasil pela mesma BestSeller que edita os livros de Ronson). Jovem estrela em ascensão no terreno do jornalismo de divulgação científica, Lehrer caiu em desgraça depois que vieram à tona citações alteradas em alguns de seus livros. Outro caso de ampla repercussão analisado por Ronson é o da relações-públicas Justine Sacco, que publicou uma piada racista no Twitter quando estava embarcando em uma viagem para a África — e cuja vida desmoronou, sem que ela soubesse, durante as 12 horas que o voo durou: foi demitida ainda em viagem, teve seu perfil inundado de mensagens e virou notícia internacional – com mobilização de pessoas pela rede para tentar conseguir uma foto dela no momento do pouso.
Ronson entrevista Lehrer e Justine, bem como alguns participantes que se engajaram nos frenesis de justiçamento de ambos na rede. Pesquisa também o histórico da humilhação pública como punição (exposição na praça amarrado no pelourinho ou na berlinda, chibatadas, etc…) e os motivos pelos quais tal tipo de punição foi sendo abandonada. Não em todos os casos, claro.
Ronson também entrevista defensores do retorno à humilhação como uma prática judiciária oficial com fins pedagógicos, como, por exemplo, o controverso magistrado e deputado federal eleito pelos Republicanos (quem mais?) no Texas (onde mais?) Ted Poe — que, entre outras sentenças, ordenou que um ladrão ficasse parado com um cartaz na frente de uma loja que havia tentado roubar, ou que um atropelador parcelasse a indenização em valores baixíssimos a serem pagos mensalmente ao longo de anos — no final, o condenado apelou para poder pagar a indenização de uma vez só, por não suportar o peso na consciência a cada vez que o depósito o lembrava do que havia feito (agora que parei para pensar nisso, não sei por que o cara não teria simplesmente programado o débito em conta, mas estou divagando). Curiosamente, mesmo um homem com esse currículo se escandaliza com o rumo do justiçamento online. Poe diz a Ronson que um “linchamento online” em suas palavras prescinde da defesa que ele sempre precisou considerar no caso de seus réus.
Tribunal das redes
Ao associar a humilhação pública ao atual tribunal das redes, Ronson faz analogias felizes, mas sua abordagem tende mais à perplexidade do que propriamente à análise, o que pode ser considerado um dos pontos fracos do livro. Entre as virtudes, contudo, está a honestidade com que o autor também confessa suas próprias dubiedades com relação ao tema. Ele próprio viu com entusiasmo os primeiros episódios de humilhação na rede, dirigidos a grandes redes e corporações que ainda não haviam entendido como a banda tocava na era das redes sociais e do consumidor com acesso a milhares de pessoas em perfis online. Ao descrever a euforia inicial, ele escreve:
“Hierarquias eram horizontalizadas. Os silenciados ganhavam voz. Era como a democratização da justiça”.
Ronson, contudo, não tarda a cair em si ao perceber que ninguém parece estar no comando dessa “Justiça”. E sem regras ou leis de execução explícitas, um tuíte pode ser a diferença entre justiça e massacre – como aliás, todos nos acostumamos a ver mais vezes do que gostaríamos desde que o livro foi publicado.
O que talvez eu sinta falta relendo o livro para este texto é que, por ter sido escrito em 2015, ou seja, ainda no calor da hora de um fenômeno que ainda estava tomando forma, Ronson não aborda uma faceta da questão com a qual hoje estamos mais familiarizados: quando a ascensão do radicalismo político, especial o da extrema direita militante, parece ter “virado o fio” do fenômeno oferecendo aos “cancelados de primeira viagem” um abrigo quentinho no seio do radicalismo. Exemplos temos vários, como J.K. Rowling, que transformou seu desagrado ao tomar uma ruim ao falar umas bobagens sobre mulheres trans em uma militância transfóbica oficial (e alimentada com os milhões de dólares que ela ganhou de vocês aí, panacas que me enchiam o saco no início do século quando eu escrevia que Harry Potter como obra tinha lá seus problemas e era soterrado de e-mails contrariados). Ou os vários exemplos de brasileiros cancelados que aparentemente não têm dificuldade de arranjar colocação, como o cancelado uma vez por ano Rodrigo Constantino ou o cara da comparação casamento gay = casar com cabras, J.R. Guzzo (aliás, pelo que me lembro ainda hoje colunista do maior jornal da província).
Está aí um projeto para quem quiser segui-lo: até onde o cancelamento é realmente efetivo quando o outro lado não tem problema em dobrar a aposta no comportamento provocativo (tornando-o, apenas, uma arma muito eficiente para disparar fogo amigo).
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Do filme A letra escarlate, com Lillian Gish (Victor Sjöström, 1926) / Reprodução Pinterest