Outro dia, o jornalista Ivan Mattos comentou comigo ter percebido uma tendência de pessoas querendo reescrever a própria história não apenas mudando a forma de ser e fazer as coisas, mas apagando registros de quem e como foram um dia. Lembrei imediatamente de ter cruzado com alguns anúncios sobre “rebranding pessoal” e pedi para que ele escrevesse sobre o assunto para produzirmos uma coluna a quatro mãos.
Com vocês, o texto do Ivan:
Feliz era a peixinha Dory que não tinha memória
Ainda bem que eu não tenho intenção de apagar nada do meu passado, além de rasgar algumas fotos em que não me gosto, esquecer o que passou ou deletar alguém da minha vida – o que já fiz e enterrei no cemitério dos mortos-vivos, sem pena ou remorso. Só que hoje, na modernidade das compensações permitidas pelo mundo virtual, nas releituras politicamente corretas do passado que ficou meio fora de foco, ou simplesmente na “reparação” de coisas malfeitas, tudo o que envergonha, constrange ou incomoda está sendo apagado, e não é com borracha. O que está sendo proposto é um Alzheimer generalizado.
Desde o político corrupto e mal-intencionado que deseja varrer do mapa seus trambiques, passando pela donzela que se (des)harmonizou e quer se ver sempre bela e jovem, com o nariz da Barbie, as pessoas agora decidem inclusive sua reputação com o apagamento dos vestígios. “Parei de pintar os cabelos e não quero mais me ver assim.” Não basta não deixar as madeixas brancas. Não, os vestígios e testemunhos precisam e devem ser apagados, sem deixar marcas. Sem dó nem piedade. Não me contento em esquecer. Preciso deletar.
Até o que foi escrito é alvo hoje dessa limpeza ética, étnica, ou seja lá a justificativa esfarrapada que for. “Não sou mais assim, não me vejo mais assim, não me interessa o que está escrito.” “Hoje vou mudar”, como diria Vanusa naquela música. Só que, coitada da Vanusa, naquela época só tinha a voz a ecoar, hoje não, hoje tem a Internet para apagar e aplacar os desvios de conduta, sejam eles quais forem.
Ao contrário de mim, que ando cada vez mais caseira, o Ivan circula muito e entre pessoas das mais variadas esferas. E o fato de que ele confirma que realmente haja pessoas fazendo “rebranding” delas mesmas é algo que me faz pensar na polêmica do revisionismo das artes, cujo exemplo mais emblemático no Brasil foi o debate em torno da obra de Monteiro Lobato e que, infelizmente, se estende por diversas searas. Agora, o apagamento atinge as narrativas pessoais.
A menos que a criatura tenha estacionado no tempo e se entregue à ignorância, a tendência é que a nossa versão de hoje seja melhor do que a de ontem e pior do que a de amanhã. Eu mesma, confesso, não sei se seria amiga da minha versão de 20 anos atrás (ô mulherzinha neurótica), mas daí a querer deletar o que fiz, falei, fui? A versão de hoje é resultado inclusive dos meus piores recortes e, portanto, fingir que eles não existiram é desonesto não apenas com quem me cerca como comigo mesma.
Eu desprezo essa ideia de rebranding pessoal? De forma alguma. Trabalho diuturnamente para melhorar quem e como sou e a forma como as pessoas e o mundo me veem. Mas daí a ir em busca de estratégias de business permeadas de anglicismos marqueteiros vai uma distância enorme. Será que é mesmo interessante carregarmos rótulos que nos definam? E, pior, que omitam deliberadamente o que nos compõe, mas não serve mais? Depois do movimento #ageless (sem idade), o que vem agora, o movimento #pastless (sem passado)?