Você não é especial, caro leitor.
Eu também não sou especial.
Apesar do que dizem as propagandas de banco, os comerciais de pasta de dente e os anúncios de carros esportivos, nem eu nem você somos seres especiais. No máximo, estamos na média, o que já é muito.
O gerente do seu banco ligou para dizer que tem uma oferta exclusiva para você? Não é verdade. Aquela promoção de emprego parece ter sido projetada com você em mente? Não foi.
De novo: nem você nem eu somos especiais, leitor. Ainda bem.
Aliás, cá entre nós: aquela celebridade que apareceu esses dias em todos os stories de seus devotados amigos ou nos trending topics do Twitter? Sinto dizer, mas ela também não é especial. Na maior parte das vezes, esse “famoso” está em evidência apenas porque teve alguma sorte na vida: a de ser herdeiro de uma fortuna, de ser parente de quem é herdeiro, ou ter caído nas graças de quem é herdeiro.
Mas, mesmo assim, nós adoramos os famosos.
Tenho muita curiosidade por este culto às celebridades. Culto me parece ser uma palavra bem precisa, diga-se de passagem. Sempre me causou uma certa inquietação o quanto pessoas absolutamente banais, ainda que ricas, conseguem angariar um séquito digital que lhe faz sacrifícios diários de tempo e de atenção, um grupo de seguidores que entoa cânticos cibernéticos de adoração a pessoas absurdamente esvaziadas, quando não medíocres. Uma religião secular em que as imagens dos santos são substituídas pelo cliques instagramáveis e as preces se tornam comentários entusiasmados nas redes sociais (“Você é perfeita! Você é lindo!”).
Fulano foi jantar naquele restaurante em que cada prato custa mil reais e é servido em uma cumbuca de marfim? Temos que dar like para a sua banal alienação. Aquele ex-BBB agora está namorando aquela dançaria de funk? Nosso mundo caiu! Um hipster paulistano com fantasias de branco salvador fez um podcast sobre uma desvairada escravagista? Temos que dar a ele um Emmy, um Oscar, talvez até o prêmio Nobel da Paz! Louvemos todos a banal mediocridade dos ricos e famosos!
Falando sério, nunca entendi essa nossa adoração pelas celebridades. Talvez por ser um desses sujeitos com o azar de ter nascido sem a faculdade da fé, me causa espanto cada vez que vejo uma pessoa banal elevada à condição de divindade.
Ainda que, obviamente, o culto às celebridades sempre tenha existido, acredito que hoje ele tenha ganhado matizes bem peculiares: agora todo mundo é influenciador. Seguimos os conselhos das celebridades como fazemos com os mandamentos. Aquele ator da Globo não come carboidrato há dez anos? Opa, aí está o segredo da beleza – e não nas centenas de milhares de reais que ele ganha por ano e que pagam todos os procedimentos estéticos disponíveis no mundo. Aquela colunista meia-boca da Folha de São Paulo escreve roteiro pra tudo hoje? Uma gênia, reencarnação de Clarice Lispector… ou somente alguém que deu sorte de estar no lugar certo, na hora certa, junto às pessoas certas?
Talvez o fenômeno mais complicado do culto aos famosos, algo que vejo no meu consultório quase todos os dias, seja o sentimento de que, a qualquer momento, a nossa genialidade será finalmente descoberta, que acordaremos um dia com nossas contas bancárias transbordando por simplesmente sermos quem nós somos. A promessa de que em algum momento a gente vai “acontecer” na mídia e vai ser celebrado por todo um cortejo de invejosos adoradores que, por qualquer desatenção, no dia seguinte nos esquecerá e fará sacrifícios para outro.
Claro que é importante em certo ponto da vida, em geral na adolescência, o apaixonamento por uma ou outra figura de destaque; é necessário que tenhamos estes ideais com os quais nos identificarmos e aos quais amarmos: o jogador de futebol, a diva pop, a atriz de Hollywood… Entretanto, também faz parte da vida poder tirar estes ídolos dos seus pedestais e entender que inspiração e idealização são coisas bastante distintas: o que nos inspira nos permite seguir adiante apesar das intempéries inelutáveis da vida; o que idealizamos nos inibe e nos paralisa frente a imagens de suposta perfeição.
Aliás, essa é uma das poucas coisas que eu me permito falar sem muito receio para os meus pacientes: a vida não tem atalhos. Ponto. Não há alguém vistoriando todos os nossos passos para, em algum momento, nos oferecer aquele emprego dos sonhos ou aquela oportunidade única. O mundo, na maior parte das vezes, não está nem aí pra gente. Ainda bem que é assim, aliás: seria terrível viver sob o jugo de um olho que nunca pisca.
Mas cada vez mais chegam ao consultório jovens decepcionados consigo mesmos, entristecidos por não terem sido ainda reconhecidos pelos seus supostos talentos. Em um mundo em que parece que temos de estar o tempo inteiro nos holofotes, em que somos convocados a fazer da nossa vida uma performance aprazível, essa desilusão faz todo sentido: ora, se estou dançando direitinho no TikTok, se já fiz posts patrocinados da minha clínica, como assim eu ainda não “estourei”, como assim as pessoas não estão me parando na rua para tirar selfies comigo?
O que talvez muitos esqueçamos é que esses holofotes talvez sejam mais uma invenção da nossa cabeça, um fruto da nossa necessidade de sermos amados, do que um real interesse do mundo em nós e no que fazemos.
Supor que a vida conceda atalhos é o mesmo que imaginar-se amável a ponto de que seja permitido ignorar uma ideia fundamental: para que sejamos reconhecidos é necessário que suportemos as frustrações e agruras comuns a todos. Ainda que seja importante nos sentirmos amados, não é pela via do amor que se sustentam vidas profissionais consistentes. Ser reconhecido pelo seu trabalho é diferente de querer ser amado por simplesmente existir no mundo.
O problema maior é que esta promessa de celebração de si coloca-nos a todos, como sociedade, em uma tenebrosa roda-viva de decepção e raiva de nós mesmos. Se o fulano hitou nas redes, então qualquer um pode, logo é tudo culpa minha eu não conseguir o mesmo. Se a cantora super-mega-hiper-pop agora canta nos palcos de todo o mundo, porque eu também não posso ser um rockstar que agita multidões? Deve ser porque eu não me esforço o suficiente, então? Ou porque eu durmo enquanto eles trabalham?
Ou, por outro lado, será que não há, na verdade, toda uma indústria que transforma pessoas em entretenimento e faz delas um produto de consumo em massa?
Precipitado óbvio da lógica neoliberal de individualismo extremo, o culto às celebridades mistura elementos religiosos (a adoração, a repetição de bordões, a vida devotada) com elementos de mercado (a compra de produtos anunciados pelos influenciadores, o uso de marcas que estão “bombando” nas redes sociais) em um caldo tenebroso de alienação e, pior, de perda da sensação de se estar vivendo uma experiência válida no mundo, de que a vida cotidiana valha a pena. Como se o prazer, o gozo, a felicidade e a satisfação estivessem sempre do lado de lá, naquele story na beira da praia de alguém qualquer tomando um gin tônica com especiarias e pitaya às cinco da tarde de uma terça-feira.
Não estão.
Foto da Capa: Pexels
Todos os textos de Luciano Mattuella estão AQUI.