Durante um bom número de anos, fui editor no suplemento de Variedades do maior jornal daqui da província, por isso testemunhei de perto um viés bem específico da repercussão à guinada artística que Laerte foi desenvolvendo em seu trabalho a partir da primeira metade dos anos 2000. Até ali já consagrado como um dos grandes nomes dos quadrinhos brasileiros que estouraram com o sucesso inesperado da revista Chiclete com Banana (e que incluía ainda Luís Gê, Angeli, Glauco e até o mais jovem e na época “mascote” da turma Adão Iturrusgarai), Laerte passou a explorar as tiras de jornal como um laboratório artístico. Deixou de lado as piadas da estrutura clássica de uma tira comum, normalmente organizada em três quadros, com os dois primeiros preparando o arremate no terceiro. Aposentou seus personagens recorrentes clássicos, outra tradição do gênero, como a turma d’O Condomínio, o casal Gata e Gato e, principalmente, os Piratas do Tietê. Começou a fazer tiras em que o humor era mais sofisticado, com elementos de outras correntes do gênero, como o nonsense, o absurdo, o surrealista. Ou às vezes simplesmente explodia a camada do humor e partia diretamente para uma certa expressão de inquietações filosóficas.
Como eu dizia, uma das repercussões dessa transformação eu acompanhei de perto quando eu trabalhava em um jornal que publicava e ainda publica as tiras de Laerte (uma repercussão menor, mas nem por isso menos autêntica): simplesmente não se passava uma semana sem que algum leitor inconformado mandasse um e-mail furibundo ou uma carta à redação (sim, ainda peguei essa época) reclamando porque “a tira não tinha graça” ou “isso aí não é humor”. Houve um que chegou a me mandar um e-mail diretamente com um “te desafio a me explicar o que isso aí quer dizer, porque humor não é isso”. Ainda me lembro qual era a tira. Também me lembro qual foi minha resposta ao leitor (minha resposta preferida a qualquer leitor, aliás): o silêncio de uma não resposta. A animosidade contra Laerte era tanta que, durante um breve período em que o jornal resolveu dispensar os trabalhos dela para substituir por uma tira enlatada americana sem graça, houve manifestações de júbilo do leitor médio. Uns anos depois, quando o jornal ensaiava uma tentativa de renovação que acabou deixando pelo caminho, reconduziu Laerte de volta à página das tiras, entre outros motivos pela insistência da então editora-executiva da área de Cultura, Cláudia Laitano.
Tenho pensado muito nisso no momento em que boa parte da internet parece ter feito a profissão de fé de, por pura zoeira, se transformar nesse leitor tosco que nos mandava e-mails.
Laerte, não entendi
Minha primeira percepção de que “não entender Laerte” tinha virado uma espécie de meme veio quando vi há alguns meses no Twitter (rede social que eu adoraria poder abandonar, mas ainda preciso frequentar por motivos profissionais) que todos os dias um número razoável de perfis desconhecidos pra mim aparecia na minha linha do tempo (obrigado por isso, Elon Musk arrombado do cacete) comentando a tira de Laerte do dia, normalmente marcando Laerte ela própria na discussão e pedindo um socorro hermenêutico porque “não havia entendido” a tira do dia. Em algumas raras ocasiões, os mesmos perfis celebravam um raro momento “Laerte, eu entendi”. A coisa chegou a um tal nível de absurdo que cada postagem nova do Twitter oficial em que Laerte compartilha suas tiras já se tornou uma espécie de “flashmob” digital com gente postando meme dizendo que entendeu, meme dizendo que não entendeu, e aqueles que se dedicam a longas interpretações do que entenderam.
Se, por um lado, é engraçado paca, por outro, deixa claro que falta na escola brasileira a instrução básica para o contato com a arte visual em sua encarnação mais básica, aquela que é publicada em veículo de massa de grande circulação. Nesse sentido, tentando ser mais otimista do que sou na realidade, talvez eu esteja disposto a admitir que esse exército de gente discutindo “o que entendeu” de uma peça gráfica de Laerte talvez abra algum caminho para algo melhor em termos de recepção geral no futuro. Ao mesmo tempo, minha visão de mundo mais pessimista logo me corrige de que, sejam lá quais sejam os benefícios desse tipo de discussão estar sendo inadvertidamente proposta em larga escala a cada nova tira de Laerte, não me parece ter muito fôlego no fim das contas porque ainda é enquadrada e definida em um modelo muito limitador, o de que todas as tiras de Laerte “teriam algo pra entender”, quando isso não é verdade para a integralidade do trabalho que Laerte vem desenvolvendo desde lá o início do milênio.
Ao ponto de havermos chegado então ao motivo pelo qual decidi escrever essa coluna justo nesta semana: um rapaz chamado Izzy Nobre – influencer de Youtube com um canal no qual eu não consegui definir um exato perfil temático e que parece mais uma egotrip em vídeo ao estilo dos “vlogs” que foram sucesso lá no início da plataforma – publicou um tuíte em que perguntava se “alguém já havia entendido alguma tira do Laerte na vida”. A partir daí ele foi meio que massacrado porque não se referiu à Laerte pela sua designação apropriada de gênero, um assunto no qual eu não vou me estender porque ele diz que se equivocou por morar há tempos no Canadá e não lembrar da transição que Laerte passou. Acho sintomático de alguém que tem opinião sobre tudo, mas que, aparentemente, está longe demais para ter noção de elementos básicos com os quais sustentá-la. Também parece hilário que um comentarista de tecnologia não se dê conta de que o Twitter não é mais aquele ambiente para tiradas de efeito curtas que ele era há uns 10, 12 anos. Portanto, não me estenderei nesses tópicos, mas sim na forma descontraída como mais esse cara decidiu embarcar no meme “Laerte, Não Entendi”. Uma forma para mim reveladora de um grande descompasso geral
Laerte e o humor contemporâneo
E uma das questões com essa abordagem é que ela insiste num tipo de interpretação que não serve para abarcar a totalidade do objeto. Traduzindo: tem coisas que Laerte faz que não são para entender, meu filho. Outra questão interessante é a turma com quem você está se juntando com esse tipo de abordagem.
Nesse mundo em que o reacionarismo tomou conta, está cheio de gente, inclusive supostos apreciadores das artes gráficas, que não percebem, por motivos mesquinhos relacionados a sua ideologia moralista, o tamanho de Laerte. E o quanto a maioria dos que se interessam por arte e humor deveria estar simplesmente abismada por estar na primeira fila da história vendo o seu trabalho ser produzido todos os dias. Antes de entender a tira, me parece que há a necessidade de uma ampla parcela de quem as vê entender Laerte antes de tudo, e todos os elementos que fazem de sua arte única no seu campo.
Hoje, boa parte do humor gráfico contemporâneo ganha circulação não mais apenas em jornais ou revistas, mas em meios eletrônicos. Hoje, as redes sociais. No início do milênio, foram os blogues e sites pessoais – Laerte também foi um dos primeiros a ter o seu, o Manual do Minotauro. Na mesma época, surgiram também nomes que se tornaram os expoentes de uma nova geração que lançou as bases para muito do que vemos hoje compartilhado em redes sociais, como o trio André Dahmer, Arnaldo Branco e Allan Sieber. Muitos dos artistas que hoje promovem seu trabalho online estão numa trilha aberta por esses caras, fazendo tiras e cartuns com os códigos popularizados por eles e em sintonia com o que se faz em outros cenários, como o quadrinho francês ou norte-americano: um humor inteligente, cínico, verborrágico muitas vezes, absolutamente pessoal e autobiográfico e no qual o desenho é o que menos importa.
Dahmer sempre foi o melhor desenhista do trio, e mesmo ele construiu uma carreira com uma tira calcada na repetição da imagem de dois girassóis. Sieber e Branco claramente evoluíram muito, mas todos tinham um estilo no qual o texto era o recado, e o desenho era um veículo muitas vezes bem econômico de passá-lo. Usando a liberdade do cenário contemporâneo, em que ninguém precisa “desenhar bem” no sentido mais tradicional da expressão, eles mostraram um olhar. E muita gente os seguiu.
O texto e a arte
Grande parte das e dos cartunistas que hoje divulgam seu trabalho na rede têm um traço que muitas vezes não funciona nem como caricatura, mas que cumpre o papel de manter coeso um discurso escrito que é o verdadeiro esteio da piada, seja ela mais reflexiva e dirigida a questões sociais e pessoais, seja ela mais cínica e sarcástica, direta e pouco sutil, mas agressiva, cáustica. Muito do que se vê nos instagrans de humoristas/cartunistas hoje é uma ilustração para o texto, longo, muitas vezes num balão que ocupa quase todo o quadro e em que o desenho virou iluminura. Ou aqueles painéis múltiplos em que o desenho é ok, mas o que realmente vai te fazer rir é a organização do pensamento em texto: cada painel tem um comentário que é o foco da graça.
Não digo que isso é ruim. É simplesmente um padrão bastante identificável. E não digo que um traço mais seguro teria um resultado diferente. Penso, por exemplo, em Ricardo Coimbra, um grande desenhista, mas cujas tiras seguem o mesmo processo. O texto é que sustenta a piada, muitas vezes. É ali que está o núcleo da raiva agressiva que torna seu trabalho tão bom.
Esse é o panorama. É o Zeitgeist. É o que temos, e dentro disso, há gente fazendo coisas muito boas.
E aí temos Laerte.
Laerte fazendo às vezes esse tipo de humor, igualzinho, com texto longo em que o desenho é quase secundário. E fazendo milhões de outras paradas também. Para começar, a qualidade do desenho. Um traço que mesmo se permitindo ser mais solto e “descuidado” é absolutamente límpido. Quando publicava em um blogue chamado Mau Humor no início dos anos 2000, Arnaldo Branco chegou a comentar uma vez que aprendeu o truque de encher o quadro de elementos para disfarçar que não desenhava muito bem. Laerte pode fazer as duas coisas: encher a página com detalhes minuciosos ou ter um quadro em branco com um único elemento, e as duas coisas vão ser lindas e precisas.
Ler e sentir
Penso que está também aí um dos problemas dessa atitude geral com o trabalho de Laerte. Parece haver uma preguiça induzida pelo ambiente geral em que todo mundo está acostumado a que uma coisa precise ser dita com todas as letras. O que faz a força desse humor contemporâneo tão “falado” que citei é que os textos dos atuais artistas normalmente são bons, escritos por autores perceptivos e inteligentes com uma visão peculiar. Mas, justamente por desenhar tão bem, Laerte pode fazer isso e mais tudo o que quiser – e a inteligência ainda estará lá.
Piadas que são puro visual só funcionam se o desenho é bom, claro e imediatamente reconhecível (o que, imagino, é um dos motivos pelos quais os atuais artistas jovens escrevem tanto por cima de seu traço, às vezes precisam “colar” uma etiqueta em cima dizendo o que é aquilo que desenharam). Já as de Laerte funcionam sempre. E não só como piada. Às vezes como vinheta filosófica, como crônica melancólica, até mesmo como discurso visceral direto. O que percebo é que, infelizmente, quando o processo escolhido por Laerte é o inverso do atual padrão, com um elemento visual que abdica do texto em vez de escrever por cima de tudo, parece não haver em parte do público a mesma disposição de se engajar com o material.
E é aí que pra mim fica claro que as tiras de Laerte meio que revelam sem dar por isso um tipo peculiar de leitor. Parte do meme “não entendi” é bem-intencionado e até afetuoso. Mas outra parte é ainda a herança do leitor indignado com o que vê num espaço que deveria ser seguro e inócuo, o das “tirinhas de jornal”, e ali encontra algo que o desafia. E o que mais vimos nos últimos quatro anos foi a ascensão de um tipo de pensamento disposto a anular aquilo que o desafia em vez de tentar entendê-lo. Do Queer Museum à queima de livros. Assim, Laerte com seu trabalho muitas vezes elíptico, mas sempre impactante, se tornou um inadvertido reagente químico para revelar um tipo de leitor que faz da preguiça mental método e da ignorância autocomplacente sua profissão de fé.
Por isso, não caiam na mesma complacência de achar que a cada geração surge uma Laerte. Não se prejudiquem deixando de notar que estão dividindo o agora com Laerte.
Orgulhem-se disso.