Dia desses, no Instagram, fiquei sabendo de um dia mundial do casal (será que existe mesmo?). Era uma etiqueta convidando as pessoas a postarem uma foto com sua outra metade. Fiquei pensando, outra metade? Como assim minha outra metade? Como se fossemos algo incompleto e precisássemos de um alguém para completar-nos.
Na verdade, sim precisamos de alguém, melhor se for mais de um. Um amigo para contar nossos problemas, uma amiga para contar outros, aquela tia mais experiente que não te julga, aquele cara do trabalho que sei como, mas entende tão bem certas neuras nossas.
Agora a parte do incompleto não somos. Essa coisa de metade me fez lembrar um livro que li recentemente do Ítalo Calvino, O Visconde Partido ao Meio, onde o personagem principal vai a uma guerra e é literalmente partido ao meio pelo seu inimigo, e se divide em duas partes: uma parte boa e a outra ruim. Depois da guerra a “parte ruim” volta à sua terra natal e ninguém entende como o Visconde se tornou um ser completamente obscuro e maléfico. Depois de um tempo a parte boa também volta da guerra. Vou parar te contar sobre o livro, assim você fica curioso e lê.
Mas o exemplo é para mostrar que somos feitos de partes, podemos dizer virtudes e vícios, qualidades e defeitos, ou como perguntam nas entrevistas, fortalezas e pontos a melhorar. As partes adjetivadas “boas” a gente não tem problema nenhum em enumerá-las, publicá-las em redes sociais com aquele textão bonito de se ler. Agora as ruins…
As ruins a gente tenta esconder, mascarar, maquiar, as vezes vira uma dor no corpo, às vezes sai em forma de lágrimas, às vezes em forma de crítica a alguém, às vezes num preconceito, num racismo, numa inveja. Enfim, a gente não quer, mas ela está aí e é parte do que somos.
Conectar com esse lado nos faz entender mais sobre nós mesmo, porque sentimos o que sentimos, porque dizemos o que dizemos. Também nos faz ser mais livre ao não censurar o que também nos forma parte. E está em cada um decidir em aceitar ou não essas características, transformá-las, ajustá-las, controlá-las.
Importante aclarar que o que hoje se considera uma qualidade ou um defeito não é estático, muda de acordo com o momento de vida, o momento histórico em que nascemos, a qual grupo ou sociedade pertencemos etc.
Enfim, somos muitas coisas, mas não incompletos. E a essa coisa de postar foto de casal nas redes sociais, que normalmente é um par monogâmico dentro do modelo familiar, é típico da nossa sociedade atual e como nós, possui suas qualidades e defeitos. Mas esse é um assunto para outro texto.
Finalizo com o extrato de um poema de Mario Benedetti, que quiçá seja um pouco contraditório com tudo que falei antes, mas assim somos nós seres humanos, seres contraditórios. O poema se chama Croquis para algún día, foi escrito no período da ditadura. Deixo o original em espanhol que acredito se possa entender em quase sua totalidade (se necessário, acudam à ajuda de um dicionário ou tradutor) e é também um ótimo exercício para praticar nossa latino-americanidade (se é que essa palavra existe).
(…)
De tanto pueblo y pueblo hecho pedazos
Seguro va a nascer un pueblo entero
Pero nosotros somos los pedazos
Tenemos que encontrarnos
Cada uno somos el contiguo de otro
En las junturas quedará la historia
De una buena esperanza remendada
(…)
En la calma con gallos lejanísimos
Si se alerta el oído se descubre
Cómo la alumbra o germina
No el país en pedazos que así éramos
Sino este pueblo entero que así somos
*Carolina Murgi. Sou contadora, no trabalho conto números dos outros, aqui conto minhas histórias.