Dia desses percebi que não sei de cor a letra de nenhuma música que tenho ouvido nos últimos anos. Sabe aquela coisa de saber cantar de cabo a rabo todas as músicas de um álbum? Pois então: zero.
Mas isso não foi sempre assim.
Lembro das tardes de adolescência deitado na sala escutando as minhas bandas favoritas em um aparelho três-em-um, último grito tecnológico dos que gostavam de música. Complecionista como sempre fui, eu gostava de conhecer a fundo todas as faixas, de escutá-las na sequência. Destilava até um certo esnobismo típico de adolescente ao rejeitar os grandes hits que tocavam na rádio, aqueles lançamentos que mais agradavam ao público da FM.
Enfim, naqueles tempos eu sabia a letra das músicas. Muitas delas, inclusive, sei até hoje.
Naquela época, ficávamos sabendo pelas revistas impressas que as bandas estavam em estúdio e que iriam lançar algo novo. Entre saber dessa notícia e finalmente ter o álbum em mãos se abria um tempo de imaginar o que viria, em que se conversava entre os amigos sobre o que esperar. Algumas vezes nos frustrávamos em um primeiro momento, mas como a oferta de novidades era pequena, ouvíamos tantas vezes aquele novo trabalho que acabávamos gostando de tudo o que chegava até nós. A escassez é inimiga do bom gosto.
O leitor deve estar achando que tenho saudades daquela época. Na verdade, acho que não tenho. Pelo menos não da dificuldade de encontrar os cd’s e, principalmente, do preço que se pagava por eles. Economizei muita mesada para comprar o novo do R.E.M. ou do Nirvana, por exemplo.
Quando finalmente a internet se popularizou e aprendi a fazer download de arquivos mp3, minha relação com a música mudou. Se um amigo falava que tinha escutado o novo do Pearl Jam, por exemplo, lá ia eu buscar o álbum no Napster. E, milagrosamente – não era magia, era tecnologia -, em poucas horas eu estava ouvindo aquelas músicas.
Seria de se supor que essa sensação foi redobrada com a chegada dos serviços de streaming de música. Que estas plataformas teriam sido a realização do sonho daquele adolescente que apreciava os produtos culturais da época.
Pois na verdade não. E isso é bem triste.
Nos últimos tempos, mal e mal acompanho quando algum artista que gosto lança uma música nova. Não é incomum me deparar com um álbum que julgo ser novo, mas que, na verdade, saiu há mais de ano e passou desapercebido.
Acredito que esta é uma experiência compartilhada por muitos contemporâneos meus.
Parece que a facilidade de acesso acabou tendo como efeito colateral uma relação mais… superficial com a cultura. Quando tudo está à distância de um clique, tudo também parece ter o mesmo valor. A raridade que fazia algum lançamento brilhar na minha adolescência foi substituída pela descartabilidade do efêmero.
Mas veja bem, leitor, estou longe de ser um nostálgico. Uma parte de mim acha fantástico que tenhamos acesso imediato, no mundo todo, aos últimos trabalhos das bandas de que tanto gostamos.
O problema, creio eu, é quando essa forma de interação não se restringe aos produtos culturais, mas também se torna um modo de relação com a realidade como um todo. Inclusive consigo mesmo. Afinal, é próprio do capitalismo tardio transformar tudo em mercadoria, mesmo o amor, a felicidade e a saúde mental.
Quando supomos que o mundo nos deve satisfação imediata o tempo todo (se quero ouvir uma música, basta procurá-la no Spotify, por exemplo), facilmente nos vemos capturados por uma temporalidade que não suporta mais as demoras e as esperas.
Estamos tão acostumados a uma realidade sob demanda que talvez nem estranhemos mais o fato de procurarmos o amor em um aplicativo de celular em que o outro se coloca como um produto à venda. Ou que busquemos a felicidade e o bem-estar nas mais heterodoxas práticas terapêuticas, inclusive aquelas bastante duvidosas como as constelações familiares e assemelhadas.
Profundamente desamparados em uma época que exige que sejamos cada vez mais rápidos, produtivos e felizes, acabamos apostando tudo em saberes que prontamente nos definiriam. Talvez por isso este renovado interesse na astrologia e em diversas práticas místicas que nada mais são, hoje em dia, do que uma frágil colcha de retalhos em cujas pontas soltas buscamos o alinhavo perdido do sentindo de nossas vidas.
Nos acostumamos tanto com o barulho das certezas vindas de fora que talvez tenhamos esquecido que algumas coisas só se dão a ver quando nos permitimos escutar o silêncio que nos habita. Quando acreditamos demais que a verdade sobre nós está lá fora, terceirizamos a nossa narrativa aos ideais de um mundo neoliberal que esqueceu o brilho das coisas singulares.
Afinal, sempre vai ter alguém para dizer quem somos e como devemos agir – e cobrar bem por isso.