“Barriga solidária” é a nova denominação jurídica que se dá à cessão voluntária do útero de uma mulher para a gestação de um bebê, utilizando um embrião cujo material genético pertence a outras pessoas. Deixou-se de utilizar a expressão “barriga de aluguel” porque não pode haver qualquer forma de remuneração à cedente do útero.
Essa técnica de reprodução assistida pode acontecer em vários cenários, como por exemplo, beneficiar um casal hétero em que a mulher tenha dificuldades para gerar um bebê ou problemas de saúde que signifiquem um risco. Nessas circunstâncias, um embrião poderia ser originado, utilizando os espermatozoides do marido e um oócito da mulher, que seria implantado no útero de uma terceira pessoa.
Também é possível ser a solução caso a mulher seja estéril ou tenha se submetido a uma histerectomia, ou já tenha alcançado a idade máxima para a gestação por técnicas de reprodução assistida que é 50 anos. Nessa situação, o embrião a ser implantado na barriga solidária poderia ser decorrente da fertilização de um oócito de uma quarta pessoa (a doadora de óvulo) pelo espermatozoide do marido.
Outrossim, essa forma de reprodução assistida permite a uma mulher ou a um homem solteiro serem pais, e até mesmo que casais homoafetivos possam ter filhos. Obviamente se o casal for constituído por duas mulheres férteis e saudáveis, elas não precisarão de uma barriga de aluguel. Poderão se socorrer inclusive de uma gestação compartilhada, em que o embrião obtido a partir dos oócitos de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira.
Cumpre salientar que, como a legislação brasileira é exígua no que concerne a barriga solidária, essa técnica de reprodução assistida historicamente vem sendo regulada por resoluções emitidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), e que até setembro de 2022 não era permitida sua utilização da “barriga solidária” pelos casais homoafetivos.
Essa importante alteração no regramento aplicável, como salientado na própria exposição de motivos da Resolução CFM nº 2.320/2022 (Resolução), decorreu do reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar, pelo Superior Tribunal Federal (STF), há muito tempo, em 05 de maio de 2011. Demorou, mas felizmente o CFM terminou com essa proibição inconstitucional.
Como funciona a doação de gametas ou embriões
Gametas são as células reprodutivas masculinas (espermatozoides) e femininas (óvulos). O CFM estabeleceu uma série de regras com relação à doação de gametas ou embriões. Vou destacar apenas algumas delas:
“1. A doação não pode ter caráter lucrativo ou comercial.
- Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa, exceto na doação de gametas ou embriões para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos), desde que não incorra em consanguinidade.
2.1. Deve constar em prontuário o relatório médico atestando a adequação da saúde física e mental de todos os envolvidos.
2.2. A doadora de óvulos ou embriões não pode ser a cedente temporária do útero.
- A doação de gametas pode ser realizada a partir da maioridade civil, sendo a idade limite de 37 (trinta e sete) anos para a mulher e de 45 (quarenta e cinco) anos para o homem.
3.1. Exceções ao limite da idade feminina podem ser aceitas nos casos de doação de oócitos previamente congelados, embriões previamente congelados e doação familiar conforme descrito no item 2, desde que a receptora/receptores seja(m) devidamente esclarecida(os) sobre os riscos que envolvem a prole.
- Deve ser mantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente aos médicos, resguardando a identidade civil do(a) doador(a).
- As clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas, de acordo com a legislação vigente.
- Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que um(a) doador(a) tenha produzido mais de 2 (dois) nascimentos de crianças de sexos diferentes em uma área de 1 (um) milhão de habitantes. Exceto quando uma mesma família receptora escolher um(a) mesmo(a) doador(a), que pode, então, contribuir com quantas gestações forem desejadas.
- Não é permitido aos médicos, funcionários e demais integrantes da equipe multidisciplinar das clínicas, unidades ou serviços serem doadores nos programas de reprodução assistida.
- É permitida a doação voluntária de gametas, bem como a situação identificada como doação compartilhada de oócitos em reprodução assistida, em que doadora e receptora compartilham tanto do material biológico quanto dos custos financeiros que envolvem o procedimento.
- A escolha das doadoras de oócitos, nos casos de doação compartilhada, é de responsabilidade do médico assistente. Dentro do possível, o médico assistente deve selecionar a doadora que tenha a maior semelhança fenotípica com a receptora, que deve dar sua anuência à escolha.
- A responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões.
- Na eventualidade de embriões formados por gametas de pacientes ou doadores distintos, a transferência embrionária deverá ser realizada com embriões de uma única origem para a segurança da prole e rastreabilidade.”
Como salientado na própria “Exposição de Motivos” da Resolução, quando da utilização de bancos, a seleção de gametas ou embriões é de responsabilidade do usuário, em respeito à autonomia para formação da sua família.
Vale destacar que nos casos referentes a uma união homoafetiva masculina, haverá a necessidade de fecundação dos oócitos com espermatozoides de um parceiro isoladamente. Mesmo que ocorra a fertilização de grupos de oócitos separadamente, com espermatozoides de ambos os parceiros, o médico deverá conhecer o material genético masculino que deu origem ao embrião implantado. É vedada a mistura dos espermatozoides de ambos os parceiros, pois isso dificultaria o conhecimento da origem genética. Isso também se aplica às uniões homoafetivas femininas em que ocorre fertilização de oócitos de origens diferentes, ainda que o sêmen seja do mesmo doador.
Cessão temporária do útero
Os requisitos para ser uma cedente temporária de útero são:
“a) ter ao menos um filho vivo;
b) pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos);
c) na impossibilidade de atender o item b, deverá ser solicitada autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM).
Os requisitos previstos nas alíneas a) e b) me parecem exageradamente restritivos, diminuem em muito a chance de se conseguir uma cedente temporária de útero uma vez que não pode haver qualquer caráter lucrativo ou comercial na cessão, e tampouco as clínicas de reprodução podem intermediar a escolha das cedentes.
Felizmente a alínea c) da Resolução permite que os Conselhos Regionais de Medicina, examinem cada caso e eles têm aceitado que na impossibilidade de se conseguir alguém da própria família para ser a “barriga solidária”, possa uma amiga prestar esse gesto altamente altruísta, complexo e com efeitos imensos sobre o corpo e a psique da cedente. Para tanto, obviamente os conselhos exigem que seja efetivamente uma amiga e também que ela assine uma declaração nesse sentido.
É muito importante que sejam fornecidos para as clínicas de reprodução assistida onde serão realizados os procedimentos, os seguintes documentos:
a) termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos pacientes e pela cedente temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal, bem como aspectos legais da filiação;
b) relatório médico atestando a adequação da saúde física e mental de todos os envolvidos;
c) termo de Compromisso entre o(s) paciente(s) e a cedente temporária do útero que receberá o embrião em seu útero, estabelecendo claramente a questão da filiação da criança;
d) compromisso, por parte do(s) paciente(s) contratante(s) de serviços de reprodução assistida, públicos ou privados, com tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes multidisciplinares, se necessário, à mulher que ceder temporariamente o útero, até o puerpério;
e) compromisso do registro civil da criança pelos pacientes, devendo essa documentação ser providenciada durante a gravidez; e
f) aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável.”
Vale salientar que embora não possa haver o auferimento de lucro pela cedente ou caráter comercial em decorrência da “barriga solidária”, poderão ser ressarcidos à cedente todos os custos com consultas, deslocamentos para as consultas e exames, planos de saúde, despesas com o parto e, caso necessário, alimentação e vestuário.
Como os planos de saúde costumam estipular um prazo de carência de 10 (dez) meses para a cobertura de um parto, vale se programar e contratar um plano pelo menos três meses antes a data prevista para a transferência do embrião para a “barriga solidária”.
A legislação sobre o assunto “barriga solidária” e reprodução assistida no Brasil ainda é esparsa e pouco detalhada, mas será uma consequência natural do avanço da utilização dessas tecnologias por um número cada vez maior de pessoas, que surjam também uma série de impasses e questões jurídicas que repercutirão nos tribunais e forçarão o legislador a enfrentar essa realidade que já não é nova.
Espero que diminua o viés moralista e religioso que atingem os temas relativos a reprodução assistida no Brasil, e que a nossa legislação siga os mesmos rumos da existente nos Estados Unidos, que permite que uma pessoa contrate sim os serviços de uma “barriga de aluguel” sem ter de constranger uma parente ou uma amiga, para ter algo tão importante e sagrado como um filho. Quando a “barriga solidária” é de alguém tão próxima, há sempre o risco de essa pessoa vir a sofrer muito mais com a separação decorrente da entrega do bebê, uma vez que com frequência verá a criança que gerou, mas sobre ela não deterá qualquer direito.