Enquanto começo a escrever esta coluna, cai uma das primeiras chuvas deste verão em Porto Alegre. O som da água batendo no piso quente, o cheiro de grama molhada, a água escorrendo no vidro, tudo isso costuma me trazer lembranças boas de dias felizes de infância passados entre tios e primos, com o banho no pátio aliviando o calor. Hoje, porém, a lembrança tem um toque melancólico. Porque lembro das tantas chuvas do verão que passei chorando diariamente.
Entre dezembro de 1995 e fevereiro de 1996, no trânsito, chorei todos os dias um choro soluçado, desbragado, doído, desesperançado. Cinco dias antes daquele Natal, meu pai teve um câncer de estômago diagnosticado. Em 23 de fevereiro, três dias depois do meu aniversário de 22 anos, ele morreu. Nunca saiu da minha cabeça a imagem de um céu de um temporal de janeiro tão forte que me fez parar o carro no estacionamento de um McDonald’s no caminho do trabalho para casa. Enquanto esperava o toró passar, chorei gritado, de um jeito que eu achava que só ator ruim de novela era capaz de chorar. Eu estava com raiva e com muito, muito medo.
A lembrança que tenho de mim mesma naquele tempo – e durante todo o ano de 1996 – é muito difusa. Como a memória – felizmente – é seletiva, recordo de alguns bons momentos que passei com o Márcio, com quem havia acabado de começar a namorar, e de tatear no trabalho enquanto aprendia a ser produtora de TV. A sensação era de estar sempre me arrastando e sendo carregada pelos colegas e amigos.
Durante muitos anos, considerei esse o único trauma da minha existência. Foi preciso me tornar mãe, aos 38 anos, para aprender justamente com a minha filha pequena algo que à minha geração e basicamente todas as anteriores não foi ensinado: não podemos ignorar nossas tristezas, dores, raivas, mágoas. Elas precisam ser reconhecidas, sentidas, acolhidas, respeitadas, valorizadas. Quando escondemos ou abafamos nossos sentimentos “menos nobres”, eles inevitavelmente fermentam dentro de nós e se transformam em coisas muito piores. A boa notícia é que, hoje, isso é ensinado nas escolas.
Existe um fundo gigantesco de verdade na brincadeira corrente nas redes sociais que prega a necessidade de uma “bolsa terapia” ou de uma “intervenção psiquiátrica” no país. Relativamente recente, o conceito de inteligência emocional ainda é pouco compreendido e valorizado. Somos uma nação de traumatizados pelos mais diversos motivos. O que vimos no domingo em Brasília e estamos vendo diariamente há alguns anos é político, claro, mas é também um sintoma gigantesco do quanto estamos em sofrimento, sem dar o devido valor a essa dor. Sem curar nossos dodóis da alma, seguiremos sendo vítimas e algozes uns dos outros.