O período recente da escravização foi marcado por uma estratégia que desumanizou a imagem do negro e resultou na desconstrução da sua identidade.
O conjunto de atributos destinado ao negro, que permanece vivo e atuante no inconsciente coletivo, é também herança dessa escravização. A sua exclusão do processo produtivo, após a abolição, promoveu uma situação social na qual foram reforçados estigmas e estereótipos que favorecem a reprodução do sentimento de inferioridade e da ausência de pertencimento do povo negro.
No Brasil, o racismo se estabeleceu como um sintoma coletivo, que se impõe a população negra sempre na forma de uma violência, na expressão da necessidade de eliminação – real, física ou simbólica, daquele que não é espelho, subtraindo todas as qualidades do outro a ponto de desumanizá-lo. Escrevi sobre a desumanização a partir da cor da pele no artigo anterior, “um para frente outro pra trás”. Nele, busquei trazer o que acontece de forma objetiva a partir da construção do racismo como estrutura social. Agora, a perspectiva que quero compartilhar é outra, é interna, é subjetiva.
Quais tipos de patologias do social se constituem em uma sociedade que invisibiliza a maioria da sua população? Qual o impacto na mente, na alma, no espírito dos indivíduos negros que precisam lutar cotidianamente pela própria cidadania em um país não branco, mas que tem a branquitude como ideal?
O racismo na minha pele
No Brasil, todo o cidadão negro já sofreu, mais de uma vez, a dor da discriminação racial, tenha ela o atingido de forma consciente ou inconsciente, explícita ou velada. O racismo à brasileira se revela em atitudes persecutórias em locais de consumo, na abordagem policial ilegal e violenta, na entrevista de emprego, na busca por crédito, no estabelecimento de relações inter-raciais. É a estratégia que complementa o movimento de invisibilização de quem “não deve ser cidadão”. A mulher negra sofre a dupla discriminação, por ser mulher e por ser negra. Contra as mulheres, a discriminação é ainda mais acentuada.
O racismo deixa marcas profundas e difíceis de serem superadas.
Há bem pouco tempo lembrei da minha primeira experiência como vítima de racismo. Uma violência recorrente na vida de uma criança negra é ser chamada de “macaca” na escola. Foi assim comigo, na hora do recreio, no pátio da escola. Nunca soube lidar com aquilo. A experiência foi tão dolorosa que a apaguei da minha memória. Ela voltou, recentemente, na minha sessão de terapia.
Recordei de mim, da garota que eu era até ali, alegre, confiante, linda, eu me sentia linda, adorava usar vestidos que tivessem movimento e fazer poses para fotos. Percebi que depois daquele evento nunca mais fui mais a mesma criança.
Eu tinha apenas 8 anos, com 8 anos ninguém sabe muito bem o que fazer com a violência, aliás, com idade nenhuma. Senti dor e vergonha por algo que nem sabia exatamente o que era. Contei para a minha mãe, ela foi até a escola, e a orientadora pedagógica fez o que deu conta: repreendeu na sala de aula e na minha presença as crianças agressoras, renovando o meu sentimento de exposição e vergonha.
A exposição a situações de desvalorização causa efeitos múltiplos e deixa marcas profundas que buscamos apagar, por vezes, junto com a nossa identidade. É o que venho descobrindo no meu setting terapêutico.
Como proteger a saúde emocional de toda uma população que carrega a ferida do racismo? Como lidar com essa memória traumática? Como ter a vida severamente interceptada pelo racismo e estabelecer relações de equilíbrio com populações cultural e fenotipicamente diferentes? Como se projetam na sociedade aqueles que carregam essa ferida?
Desconstruir para reconstruir imagens
As leis antidiscriminatórias, embora de fundamental importância para construção de uma sociedade livre, não conseguem, por si só, eliminar o preconceito, pois para tanto também é necessário intervir e ressignificar crenças e valores construídos ao longo dos anos com a contribuição do agora enfraquecido, mas ainda existente, mito da democracia racial.
Graças aos esforços do movimento negro, a condição de vida de negros e negras vem se tornando uma das importantes pautas instituições nacionais. Compreendeu-se que enquanto o Brasil não resolver a profunda condição de desigualdade que afeta a maioria da sua população, não seremos uma democracia real. Voltou à ordem do dia a busca pela ampla inclusão da população negra de forma plena como cidadãos brasileiros.
Mas não basta. Ações envolvendo a dimensão subjetiva do racismo precisam ser cada vez mais introduzidas e debatidas em todos os movimentos que se importam com a realização de um estado brasileiro verdadeiramente desenvolvido.
Em um país onde a desigualdade racial foi naturalizada por séculos, a memória coletiva e os traumas oriundos do racismo precisam ser elaborados para sustentar e oferecer uma base para a cultura e a identidade desses indivíduos, descortinando o impacto da imagem que brancos e negros têm de si e do outro.
Esse processo permitirá que a experiência e o saber ancestral possam resgatar e solidificar a identidade individual e o nosso pertencimento como cidadãos, possibilitar que não fiquemos escondidos nas nossas próprias sombras.
Sankofa: não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu
“Durante uma conversa com Will Smith, no set de filmagem, ele me perguntou:
– Viola, quem é você?
– Como assim? Eu sou eu.
– Não, mas quem é você?
– O que você quer dizer?
Olha, eu sempre vou ser o garoto de 15 anos que levou um pé na bunda da namorada. Então, quem é você?
(…)
– Sou a garotinha que corria para a casa todo dia no terceiro ano porque uns garotos me odiavam por eu…não ser bonita. Por eu ser… negra.”
Na sua biografia, intitulada Em Busca de Mim, Viola Davis se apresenta como a garotinha que fugia do próprio passado até tomar a transformadora decisão de parar de fugir para sempre.
Durante anos fugi da garotinha de 8 anos humilhada no pátio da escola. Achava ela frágil, vulnerável, acreditava que as suas marcas eram pesadas demais, e que era melhor deixá-la lá no passado.
Minha descoberta mais recente é que só cheguei até aqui por causa dela, foi ela que sobreviveu a esse e a outros tantos atravessamentos. Ela é uma sobrevivente, ela é durona, e desde que me aproprie da minha própria história, poderei ser um lar para ela.
E você, quem é?
Alessandra Francisco Silveira é advogada, pós-graduanda em Direitos Humanos, responsabilidade social e cidadania global. É mentora de carreira e consultora em diversidade, equidade e inclusão na @_we_are_connected.