Rapidez e conveniência. Palavras que ditam nosso tempo. Em tudo, comida inclusive. Degustar virou exceção. Comer para saciar. É fácil esquecer o verdadeiro poder da comida. Repensar é preciso. Estou aqui preparando o roteiro para um workshop de escrita expressiva na cozinha. Em um fim de semana dedicado aos pequenos prazeres da nossa existência, me cabe guiar grupo a explorar a relação com a comida. Quero que seja uma atividade prazerosa diante das panelas. Preparar com calma, comer sem pressa. Refletir. Mesclar sabores e palavras, sentimentos e texturas, lembranças e cores. O processo de confecção da comida é também uma jornada emocional. À medida que cortamos, misturamos e cozinhamos, somos por vezes transportados de volta à infância, onde os aromas da cozinha eram sinônimo de aconchego.
Pausa aqui para minhas próprias lembranças. Chego na casa da avó e corro para a cozinha. Lá estava ela fazendo o bolo branco com raspas de limão. Ainda posso sentir esse cheiro. Tinha que esperar o tempo do forno e então ela me dava um pão com manteiga e açúcar para tornar a espera ser mais doce. Na casa da avó podia. Tenho saudade desse momento. Ficou guardado.
Corto o limão que tenho nas mãos, espremo e me arde um pequeno corte no dedo. Volto à realidade. Estranho falar de prazer e comida quando a fome só aumenta em todo o mundo. Segundo dados da ONU, o número de pessoas que passam fome e sofrem de insegurança alimentar vem aumentando gradualmente ano após ano. Em 2020, entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas em todo o mundo estavam nesta situação. Quatro anos depois, com a crise do COVID e as guerras, a situação se agravou. Será difícil alcançar a meta global de Fome Zero até o prazo estipulado de 2030. Sabor amargo.
Paro e coloco aqui uma pitada de otimismo. Você já ouviu falar de comida ancestral? A proposta deste movimento é valorizar mais a “comida de verdade”. Gosto do pensamento da nutricionista e pesquisadora Sandra Chaves, coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Ela defende que a humanidade precisa “reaprender a comer”. O caminho será a valorização da produção agrícola sustentável, amiga do meio ambiente. Sandra é categórica ao afirmar que a forma como nos alimentamos tem a ver com o avanço das mudanças climáticas. O futuro é assustador. Temos que fazer o caminho de volta. A alimentação ancestral, além de deliciosa e nutritiva, é uma das formas de mitigar os efeitos destas mudanças. Menos margarina e mais manteiga. Menos biscoito recheado e mais fruta. É um basta na industrialização.
Volto para minha receita. Sigo escolhendo os ingredientes para o nosso encontro e vou aos poucos temperando as ideias. Lembro da música dos Titãs: Você tem fome de quê? Desejo, necessidade, vontade. Necessidade, desejo. Necessidade, vontade.
Jornalista vai fazer comida
Minha relação com a comida tem um ponto de inflexão: o dia que resolvi trabalhar na cozinha. Jornalista por formação, virei cozinheira por uma decisão que tomei na vida. Eu abri um restaurante de comida vegetariana e passei de expectadora à protagonista da minha cozinha. Foi um professor de pintura, no Taller del Prado, em Madri, que me deu o impulso que precisava para acreditar que eu podia. Era minha última aula, estava de mudança para Portugal para abrir meu novo negócio. Não tenho jeito para cozinhar, eu disse enquanto misturava as tintas. Hanoos, um artista de mão cheia, prontamente respondeu: quem sabe pintar, sabe cozinhar. E eu descobri na prática que há sim uma relação entre cores e sabores na culinária. Guardo na memória as palavras de incentivo, como também o sabor das Tâmaras que ele levava para as classes de arte. Vinham do Iraque, seu país de origem.
Sem formação oficial em gastronomia, intuitivamente criei o meu próprio estilo culinário desenvolvendo receitas baseadas no círculo cromático. Deu certo e foi lindo. Era comida com amor, diziam os clientes. Este foi o momento que tive a certeza que a comida desempenha papéis duplos em nossas vidas, nutrindo tanto o corpo quanto a alma. Quando nos entregamos à comida, o resultado assume outra dimensão. É pena estarmos perdendo isto.
Toca a companhia. Vieram fazer a entrega da minha cesta de frutas e legumes “feios”. Semanalmente recebo em casa alimentos considerados imperfeitos para o mercado. São feios por causa do tamanho, da forma e da cor. Temos aqui também que rever nossos (pré) conceitos. Segundo dados da FAO, organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a exigência pelo “belo” resulta num desperdício de cerca de 30% do que é produzido pelos agricultores na Europa.
A luz no final deste túnel é que há cada vez mais pessoas acolhendo iniciativas como as da Fruta Feia, que ao recolher e distribuir alimentos rejeitados, combatem o desperdício alimentar, que tem como consequências não apenas questões éticas, mas também ambientais.
Já pensou no gasto desnecessário dos recursos usados para a produção, como terrenos, energia e água, além da emissão de dióxido de carbono e metano resultante da decomposição dos alimentos que não são consumidos? De acordo com os últimos dados do Instituto Nacional de Estatísticas, só em Portugal são desperdiçadas mais de 1,8 milhões de toneladas de alimentos por ano. Podem até ser feios, mas não impróprios para o consumo.
Estamos em abril, veio agrião na minha cesta. Pensamento voltou muito no tempo e me vi sentada na mesa da casa de uma tia, irmã do meu pai. Recusei a salada e fui obrigada a comer um prato cheio de agrião. Só superei esse trauma recentemente, mas confesso que prefiro a sopa do que ter que mastigar folhas.
Essa conversa toda me deu fome, só não sei se de comida, ou de mais pensamentos.
Está decidido o cardápio do workshop.
Não haverá bolo de limão e nem salada de agrião. Contudo, prometo surpresas. Fazer sobremesa com o que temos o hábito de usar nos preparos salgados e usar ingredientes inusitados para a confecção do prato principal. Vamos aguçar os sentidos.
Os produtos serão regionais, a escolha da receita ancestral. Em uma mão a colher, na outra a caneta. Não sei o que sairá primeiro, a comida ou o texto que os participantes irão escrever.
Certeza só tenho uma: será prazenteiro, como foi para mim juntar aqui informações, divagações e memórias.
Foto da Capa: Freepik
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