O retorno de uma psicanalista de seus dias de recesso sempre mostra o lado B das festividades de final de ano das redes sociais, que exalam comunhão, gratidão, lugares paradisíacos e família reunida. As pessoas retornam aos consultórios e seus divãs sempre trazendo as dificuldades nos reencontros familiares, as desavenças, diferenças de posicionamento e personalidade. Nada de novidade e é para isso mesmo que os consultórios existem, mas sempre penso ser importante lembrar que estamos todos recomeçando o ano ainda cansados, às vezes até mais do que terminamos, mesmo com o maravilhoso ferrolho que tivemos esse ano com a incrível conquista de Fernanda Torres e do cinema brasileiro com o Globo de Ouro.
Gostar das outras pessoas não tem sido tarefa fácil. O mundo anda egoísta e assustador em muitos aspectos. A arte salva e tenta aplacar ou pelo menos ajudar a metabolizar tantas transformações, isto é fato. Há alguns dias assisti ao filme “O mundo depois de nós”, de 2023, protagonizado por Julia Roberts e Ethan Hawke. O filme retrata um casal americano que aluga uma casa afastada de Nova York para passar uns dias de descanso com seus dois filhos. A partir de um determinado momento, eventos estranhos vão acontecendo e desenrola-se uma série de desastres, como quedas de aviões, navios perdendo controle e invadindo a costa, perda total de qualquer sinal de telefone e internet. Eis que nessa bonita casa alugada surge, no meio da primeira noite, os proprietários. Um pai e uma filha, ambos negros. A partir daí, o filme segue apresentando ao espectador um clima de desastre global iminente, mas que em nenhum momento se revela efetivamente o que seja. O mais interessante é o que se desenrola nas relações e o que passa a ser explorado pela obra.
As questões raciais e o racismo velado da protagonista, as questões tecnológicas e o quanto isso nos afasta dos vínculos mais importantes que temos. Os diálogos vão se aprofundando e, num determinado momento, fica evidente que para manter um mínimo de sanidade na casa, era preciso agarrar-se ao essencial. A conversa, a busca por intimidade. Desde o início do filme, Amanda, a personagem de Roberts, fala que odeia as pessoas e que o dono da casa, a partir da aproximação emocional com ela, passa a desafiar esse seu “ranço” com as pessoas. Ela coloca um disco na vitrola (já que certamente Spotify e outros streamings musicais certamente não funcionariam) e eles começam a dançar. O fato é que estamos nos odiando demais. A nós próprios e ao próximo. Não temos tolerância com a insuficiência do outro porque escancara a nossa própria. Num determinado momento de perigo, Amanda e a filha do proprietário da casa só conseguem sobreviver porque se unem, porque se abraçam. O mundo anda num colorido narcísico difícil de deglutir, onde o diferente que me causa desconforto deve ser eliminado ou então simplesmente ignorado. Essa é a nossa catástrofe, e na minha percepção foi essa a grande sacada do filme. Desde o início eu esperava por algo apocalíptico como esses filmes Hollywoodianos e seus efeitos especiais oferecidos ano após ano. Mas não há tsunami, não há terremoto, deslizamento, ataques alienígenas. O desastre somos nós. O final do filme deixa a questão em aberto de uma forma intrigante e perfeita.
É preciso, mais do que nunca, olharmos uns para os outros e sairmos de nossas próprias projeções e mecanismos de defesa que excluem o outro ou depositam nele tudo que há de mau. O mal está em nós, mas o bem também, se ainda houver tempo antes de começarmos a nos destruir ainda mais.
Mas vocês viram a Fernanda Torres?
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Foto da Capa: Reprodução do Youtube