Não sou uma carnavalesca daquelas que passam o ano sonhando com a data, mas tenho boas memórias dos bailes da minha vida. Me lembro da fantasia de odalisca na infância e da rebeldia de não querer fantasia nenhuma na adolescência, quando o colar de havaiana já era mais que suficiente.
Depois de adulta, e com a vida no piloto automático, as festas foram ficando escassas. Carnaval passou a ser na escola dos filhos e um bailinho ou outro com eles.
Entretanto, gosto. Mesmo longe do país que tem o melhor carnaval, gosto. Porém, gosto do carnaval simplesinho. Gosto das marchinhas clássicas. Não sou fanática pelos desfiles. Gosto dos bloquinhos, como gostava dos bailes da infância e da adolescência.
Este ano, a casa estava vazia em pleno feriado. Poderia me entregar ao sofá e à televisão? Poderia. Poderia ler e descansar? Poderia. E quem foi que disse que uma coisa exclui a outra? Em quatro dias cabem tantas possibilidades.
No sábado de carnaval, pintei o rosto de Colombina e rumei para um cortejo de banda. Sim, senhores, a tradição dos bloquinhos com jeitinho brasileiro está chegando com tudo em Portugal. Mesmo com chuva, mesmo com frio, não resisti. Nunca tinha visto uma colombina de casaco e botas, mas ela estava ali, no espelho, diante de mim.
Mal cheguei na festa e adivinha? A minha música tocou.
“Tanto riso
Ó, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão”
Para mim, essa é uma das mais lindas canções que conheço. Foi escrita em 1967 por Zé Kéti, antes mesmo do meu nascimento. É atemporal. Assim como o panetone do Natal, Máscara Negra faz parte do ritual do carnaval. Só escuto nesta época do ano. Achei que ter tocado justo quando cheguei foi um sinal. Ou seria mera casualidade? Seja como for, desta vez ela entrou pelos meus ouvidos e me levou para longe.
“Tanto riso, ó, quanta alegria”
Olhei ao meu redor e éramos muitos fantasiados de riso e canto. Eu colombina, em meio a tantos outros personagens. Senti um certo desconforto. Que direito tenho eu de estar aqui brincando enquanto o mundo pede socorro? Antes de ser tomada pela culpa, fui puxada de volta quando a música subiu de tom e todos gritavam em uníssono:
“Não me leve a mal
Hoje é carnaval”
Era Carnaval! E voltei a dançar e a cantar. O carnaval tem esse poder de nos arrebatar das preocupações cotidianas e nos transportar para uma dimensão de cores e ritmos. E por que não? Me entreguei.
“Foi bom te ver outra vez
Está fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrot
Que te abraçou
Que te beijou, meu amor”
Ao entrar novamente no compasso lento da música, tive a sensação de dar as mãos para a melodia e visitar velhos carnavais no limbo dos meus pensamentos. Cheguei a sentir o emaranhado das serpentinas, o gosto do papel do confete na boca. O suor dos corpos que se encostavam no salão. A corrente humana que corria e pulava e que de repente se partia ao esbarrar com “aquele Pierrot”. Lá estava eu, entregue a uma euforia onírica, matando a saudade da festa.
“Na mesma máscara negra
Que esconde teu rosto
Eu quero matar a saudade”
Ah, que saudade! E eu queria matar essa saudade. Saudade de uma época em que o riso era fácil, que o corpo dançava sem amarras. Um tempo em que a vida pulsava intensamente. Fechei os olhos e, de mansinho, veio a tal melancolia, misturando alegria contida, tristeza suave com um toquezinho de nostalgia. Sorri suavemente com minha boca pintada de carmim. Um sorriso tímido, mais pra dentro do que pra fora, mais para mim do que para o mundo.
Começou a chover. Olhei para cima e senti a água no rosto. Sabia que naquele momento a maquiagem iria se desfazer. E não me importei com aquilo.
“Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval”
Passei a mão na boca para apagar a mancha do batom borrado pelo beijo roubado pela chuva.
Foi bom te ver outra vez colombina, pensei.
E me reencontrei.
“No meio da multidão!
No meio da multidão!”
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Foto da Capa: Reprodução