Visitar lugares já vistos muitas vezes no cinema e nos telejornais sempre me causa uma apreensão. Vale a pena? Corresponderão à ideia pré-formada? No caso de Washington DC, de fato, foi como um déjà vu caminhar pelo Mall tantas vezes visto e revisto em cenas de protestos contra a guerra do Vietnã ou do famoso I have a dream, de Martin Luther King. Sem falar nas inúmeras tomadas ao vivo que repórteres fazem com o Capitólio ao fundo.
Talvez o maior impacto que sofri foi perceber que as reais dimensões daquele gigantesco tapete verde que se estende do Capitólio ao Lincoln Memorial ficam ainda maiores quando se decide percorrer a pé seus 4km de extensão. A identificação dos edifícios que se abrem para esse eixo também surpreende. Falo do simbolismo que cada edifício ou monumento passa a ter só por ter sido escolhido para participar de um conjunto dessa magnitude. É como uma lista de convidados de cerimônia importante. Diz da cerimônia e diz dos convidados.
O arquiteto francês Pierre L’Enfant escolheu, em 1791, uma rara colina da cidade para localizar a imponente sede do Congresso Americano e torná-lo ponto focal do Mall. É visível o destaque que esse edifício tem em relação aos demais. Grandioso, majestoso, é símbolo material da pátria que se iniciava com os ideais de uma república. Em 1922, a outra ponta deixou de ser a margem do rio Potomac com a construção do Lincoln Memorial. A escala e imponência desse outro extremo do grande eixo é um tanto menor que a do Capitólio, mas diz alguma coisa o contrapeso ao congresso ser uma homenagem ao presidente que uniu o país e deu fim à escravatura. De cada lado, edifícios administrativos, museus, outros memoriais e monumentos, incluindo o famoso obelisco dedicado a Washington, que também forma o cartão postal da administração federal norte-americana.
E a famosa Casa Branca? É preciso procurá-la. Espanta um pouco descobrir que ela ocupa um papel secundário na montagem desse cenário que foi feito, agora ficou claro, para exaltar uma república e não um reinado. Isso explica a localização da casa do presidente.
Distante a dois terços da longa caminhada, e tendo o obelisco como referência, se vê um parque lateral que se configura como um eixo secundário do Mall. Nos fundos, lá longe, para quem já sabe ou olhou no mapa, se identifica uma edificação em nada chamativa: a famosa Casa Branca. A parte de trás dela, na verdade. Tão sem importância, do ponto de vista simbólico-arquitetônico, que o grande obelisco que homenageia Washington, o fundador da nação – que o Google diz ser o maior do mundo (não somos só nós com essa mania) –, não se alinha com o centro da sede do executivo.
Há, nessa disposição, uma régua que contraria a importância que os presidentes norte-americanos passaram a exercer ao longo da história e, hoje, chega ao paroxismo com Donald Trump, que se diz ser o rei da nação. Fiquei pensando se vai querer substituir a Casa Branca por uma Trump Tower mais alta que o obelisco…
Mais interessante ainda é que tudo o que descrevi até aqui é o que está na parte de trás do Congresso. A sua frente é voltada para um largo composto de outros dois edifícios imponentes: a Suprema Corte e, surpresa, a Biblioteca do Congresso. Surpresa para mim, evidentemente. Jamais imaginei a importância que os livros pudessem ter para os políticos de uma nação.
A decisão de onde colocar cada edifício público, ainda mais em uma capital federal, expressa a tábua de valores de quem faz a encomenda e projeta a nova cidade. Biblioteca, Suprema Corte e Congresso reunidos. Dá o que pensar. A presidência, lá longe, ligada diretamente, é verdade, por uma avenida em diagonal sem nada de especial. O que quer dizer isso? Valores da república materialmente expressos na arquitetura.
E tem mais, o Mall é ladeado por incríveis museus nacionais que vou deixar para comentar em outra crônica. Igrejas fazem parte desse conjunto? Nenhuma. Não sei quais eram as pretensões de Washington e seu arquiteto, mas vejo que buscaram uma organização espacial que dá ênfase ao poder legislativo, à Suprema Corte, à Biblioteca e às instituições culturais. A poderosa instituição Smithsonian, que é o maior complexo de museus e institutos de pesquisa do mundo, tem uma sede mais vistosa que a Casa Branca e está localizada, à vista de todos, em lugar privilegiado lindeiro ao Mall.
Um pouco afastado, mas nem tanto, na beira do rio Potomac, está o John F. Kennedy Center for Performing Arts. Um complexo gigantesco que, como o nome já diz, é dedicado principalmente à música, ao teatro e à dança, com salas de apresentação para até 2.500 pessoas. Esse Centro recentemente ocupou as páginas dos jornais porque Trump destituiu toda a sua diretoria e tomou para si o cargo de CEO da instituição. A intervenção, que causou indignação nos amantes das artes, também mostra com clareza a importância que governantes com tendência autoritária dão em controlar a arte, por mais que nas redes se apresentem como defensores da liberdade de expressão.
Por enquanto, falei da porção mais representativa da cidade, a sua dimensão monumental e política. E a cidade dos moradores, como ela é? Adianto que me surpreendi bastante, imaginava-a seguindo os parâmetros de Nova York ou Chicago. Não segue.
Contarei minhas impressões em outra coluna, mas já adianto que, se me pedissem para resumir em uma palavra o que encontrei lá, diria: gentileza. Sim, uma cidade gentil.
Todos os textos de Flávio Kiefer estão AQUI.
Foto da Capa: Acervo do Autor.