O que faz uma cidade ser gentil? Uma boa resposta para essa pergunta talvez seja uma cidade que ofereça espaço e silêncio para ser contemplada e fruída sem percalços. Em tempos de excessos de toda ordem — publicidade, luminosos, decibéis atordoantes —, a ausência deles causa uma reconfortante sensação de acolhimento e de liberdade para se estar consigo mesmo e, logo, com ela, a cidade. Washington não se exibe, tampouco se esconde, recebe o visitante com amabilidade e até certo recato. Cabe a nós puxar conversa e fazê-la falar, se for do nosso interesse. Era o meu e de minha filha durante a semana de inverno rigoroso que passamos por lá.
Nomes de lojas grafados em letreiros no tamanho necessário para serem lidos por quem as procura. Ausência de painéis LED, de qualquer tamanho, piscando imagens. Nem mesmo dentro do aeroporto, metrô ou ônibus os encontramos. Essas ausências dão tempo e disposição para olhar para a arquitetura, para a paisagem e detalhes que a cacofonia das cidades ocidentais contemporâneas esconde.
Os edifícios compõem quarteirões compactos e homogêneos em altura. A gente olha mais para o conjunto do que para cada prédio. Mas se detivermos o olhar, pode-se desfrutar de elegantes fachadas feitas com materiais de qualidade. Os passeios largos convidam a caminhar e a flanar, sem destino, com prazer. Qualquer direção vale a pena.
Numa esquina, um banner cobre uma fachada inteira: Black Lives Matter | Black Trans Lives Matter. Mais adiante, o mesmo letreiro, sem o trans, pintado no asfalto em letras garrafais, ocupa duas quadras inteiras (por pressão dos republicanos em consequência do governo Trump, o mural foi destruído um mês após a nossa visita). A cidade era silenciosa, mas estava falando, tinha o que dizer. E, no caso, pra nós, soou como música.
Os carros são dirigidos com uma certa lentidão à qual não estamos acostumados. Atravessar uma rua é a coisa mais fácil e segura que existe. Todos os cruzamentos têm um tempo longo para os pedestres e os motoristas se comportam como se soubessem que também eles não passam de pedestres motorizados.
As motoristas de ônibus, na maioria mulheres, se não chegam a esboçar sorrisos de graça, parecem não ter pressa pra nada. Aguardam os passageiros subirem e se acomodarem com invejável paciência. Avançam e param diante de qualquer obstáculo sem a menor irritação. Não trocam de faixa, aguardam para avançar. Quem quase se irritou foi o brasileiro aqui… Força do hábito. Precisei de alguns dias para me desintoxicar.
Para quem tem pressa, no subsolo da cidade, diversas linhas de metrô levam os passageiros de um lugar para outro com mais objetividade e velocidade. As estações são de uma simplicidade e beleza arquitetônica que surpreende. Todas com o mesmo padrão arquitetônico. Rara publicidade, nenhum tipo de luminosos irritantes, apenas alguns banners discretos em algumas delas. O silêncio só é quebrado com a chegada do comboio. Poucas vezes ele veio cheio, nunca lotado. Não foi difícil encontrar lugar para sentar. Comprar e carregar um cartão em uma máquina é fácil e sem complicações. Ele serve para qualquer meio de transporte, inclusive para a periferia, como os dois aeroportos atendidos pelo metrô.
As ruas obedecem a dois sistemas de malha que facilitam o entendimento e a orientação. Há o sistema ortogonal, mais rígido, com ruas e avenidas identificadas com números num sentido e o alfabeto no outro. Fica fácil calcular distâncias a serem percorridas usando a própria cabeça. Um sistema de coordenadas pra ninguém se perder. Simples, não? Mas para apimentar essa solução racionalizada, existem as avenidas diagonais unindo pontos específicos. Cortam caminho. Rapidamente a gente aprende a identificá-las, porque elas têm nomes como as nossas. Nomes de cidades.
Essa sobreposição de malhas cria interseções inusitadas de quando em quando. Às vezes como praça, às vezes como rótula. Também fazem os edifícios se adaptarem à peculiaridade de seus terrenos. À facilidade de um traçado xadrez, fácil de se orientar, soma-se o encanto de situações particulares. É como a Broadway, que ao quebrar a rigidez do traçado xadrez de Nova York, torna cada uma de suas esquinas um lugar especial. Só que aqui as “broadways” são múltiplas e seus cruzamentos são cuidadosamente embelezados com praças e jardins.
Caminhar de um lado para outro, então, fica fácil e agradável. Ninguém se perde. E se se perder, vale perguntar pra quem estiver perto em vez de usar o Waze. O pessoal gosta de conversar, é simpático e bem-humorado. Apesar de ser inverno, deu para perceber a quantidade de árvores plantadas por todas as ruas. Na primavera, a cidade deve ser encantadora, sem dúvida.
Nos quarteirões formados por esse traçado sui generis foram construídos prédios que obedecem a um regramento de altura imutável desde sempre: fachadas que formam uma parede proporcional à largura da rua. São princípios artísticos, acadêmicos, anteriores ao urbanismo moderno. Os edifícios variam, conforme a quadra, entre oito e dez andares. Não há arranha-céus ou grandes torres em parte alguma dentro dos limites do Distrito Federal. Em sua periferia, que na verdade pertence aos estados de Virginia e Maryland, se vê aglomerados de edifícios comerciais, que alcançam, talvez, vinte e poucos pavimentos. Nada rivaliza, nem de longe, com os 169m do obelisco dedicado a Washington citado na primeira parte dessa crônica. Isso dá um conforto visual inigualável – gentileza urbana.
Senti falta de um pouco mais de vida comercial nos térreos das áreas mais centrais da cidade. Elas existem, mas estão um pouco mais afastadas do centro de trabalho. Georgetown, por exemplo, tem um animado centro comercial e guarda as características históricas das casas geminadas. Nada de edifícios se intrometendo no meio das casas. Aqui predominam dois ou três pavimentos. O campus da universidade mais tradicional fica ali e as casas dos estudantes e professores têm as portas abrindo diretamente para as calçadas, sem cercas ou muros. Isso dá ao bairro ares de cidade interiorana animada e divertida.
O comércio, bares e restaurantes, a cidade toda, até onde percebemos, fecha cedo. Às 20h se dá o pico do movimento noturno. Desce o frio e o silêncio depois das 21h. Não sei dizer o que acontece no verão. Deve mudar bastante.
Tudo o que falei até aqui traz uma sensação de prazer de estar em Washington. Agora, acrescente a isso uma quantidade de grandes museus à sua disposição, de graça, para você desfrutar. Impossível visitar todos em uma semana, há que se selecionar de acordo com a preferência de cada um.
Posso citar a maravilha que é o acervo da National Gallery of Art e a arquitetura deslumbrante da ala construída para a arte moderna. O National Museum of African American History and Culture é imperdível pelo conteúdo histórico (dolorido) que carrega. O da aeronáutica é um deleite para quem ama tecnologia e olha para o céu; o Hirshhorn, dedicado à arte contemporânea, tem exposições temporárias de alta qualidade; e a Phillips Collection, o único que pagamos, vale muito a pena. Instalado na antiga casa de um colecionador de obras de arte dignas dos melhores museus do mundo, é tão doméstico que tem até uma padaria onde a vizinhança compra pão. Deu vontade de fazer o tempo parar quando sentamos na frente de um enorme Renoir, como se estivéssemos na sala de um amigo.
Sei que a palavra gentil remete a uma subjetividade que a materialidade não pode explicar. A arquitetura e o urbanismo são reflexos do modo de ser de quem faz a demanda e de quem por fim ali habita. São as pessoas que dão a cor e o sabor do lugar. Sendo assim, são os habitantes de Washington, e seus representantes, que merecem o maior elogio pela cidade que fizeram e mantêm. Oxalá tenham forças para resistir às diatribes do período Trump, novo inquilino da Casa Branca.
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Fotos: Acervo do Autor.