“Não é suficiente ensinar uma especialidade a um ser humano. Através disso, ele se comporta como uma espécie de máquina aproveitável, mas não uma personalidade completa.”
Albert Einstein
O caçador de Cro-Magnon foi provavelmente o primeiro ser humano a poder contar uma história do começo ao fim, porque também foi o primeiro capaz de ler nas pistas mudas ou quase imperceptíveis deixadas pelas presas uma sucessão coerente de eventos.
Na Grécia antiga, pela primeira vez, esse tipo de saber dito indiciário ou sintomático (de indícios, sintomas, sinais) começou a ser usado para a aquisição de outros conhecimentos. E particularmente foi útil na medicina hipocrática, cujos métodos foram baseados na noção de sintoma (semion). Observando-se todos os sintomas e sinais, é possível chegar-se a um diagnóstico.
Porém, como em outros conhecimentos humanos, a medicina, sendo por natureza um saber indiciário, baseia-se em conjecturas, em hipóteses e, portanto, é plena de dúvidas e de incertezas. E, às vezes, de lamentáveis equívocos.
O paradigma científico, baseado na física galileana, newtoniana e na filosofia cartesiana, introduziu os conceitos de “rigorosidade” e de “quantificação” nas ciências humanas, que, por serem disciplinas eminentemente qualitativas, o emprego delas e do método experimental pressupõem critérios tanto de quantificação quanto de reprodutibilidade dos fenômenos biológicos. E como estes se apresentam sob a forma de eventos, situações e dados individuais, suas soluções têm margem muito grande de casualidades, de incertezas e grande dose de subjetividade. E estas derivam tanto do fato de que não basta classificar as doenças e colocá-las num organograma, já que em cada indivíduo a mesma doença assume características diversas, quanto do fato de que o entendimento das enfermidades ainda é feito de forma indiciária e, como bem se sabe, a unidade corpo-mente é dificilmente atingível, mesmo com a atual tecnologia imagética.
O paradigma médico baseia-se numa forma de saber cujas regras nem sempre se prestam a ser racionalmente explicitadas. Ninguém apreende o ofício de “diagnosticador”, porque esse tipo de habilidade é constituído por elementos imponderáveis e individuais: experiência, faro, golpe de vista, intuição, olho clínico. O diagnóstico é uma tarefa, diríamos, “sherlockiana”. Conan Doyle, que era médico, fez de Sherlock Holmes um arguto detetive que empregava o saber indiciário acrescido de grande dose de intuição e fina percepção, sendo esta sua diferença com o Dr. Watson, que raciocinava apenas com o paradigma médico elementar.
Não é mera coincidência que um outro médico também tenha se valido do paradigma indiciário para identificar obras pictóricas, quadros e afrescos de artistas famosos. Giovani Morelli, no final do século 19, era árbitro nos grandes leilões e museus que necessitavam identificar as obras autênticas das imitações. Seu método proporcionou contribuições fundamentais ao utilizar o paradigma indiciário na identificação da autoria de quadros e afrescos de grande valor artístico. E monetário.
Os museus, dizia Morelli, estão cheios de quadros atribuídos de maneira incorreta. Muitíssimas vezes encontramo-nos frente a obras não assinadas, talvez repintadas ou num mau estado de conservação. Nessas condições, é indispensável poder distinguir os originais das cópias. Para tanto, porém, é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, os olhos erguidos para o céu dos personagens de Perugino, o sorriso dos de Leonardo e assim por diante. Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés.
Dessa maneira, Morelli descobriu e escrupulosamente catalogou a forma da orelha própria de Botticelli, a face orgásmica de Santa Teresa, traços presentes nos originais, mas não nas cópias. Com esse método, propôs centenas de novas atribuições nos principais museus da Europa. Tais dados marginais, pormenores desapercebidos, para Morelli eram reveladores porque fugiam do controle do artista: traços puramente singulares, que lhe escapam sem que ele se dê conta. Morelli propunha-se buscar no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados, como o pictórico, os signos que tinham sintomas involuntários (e da maior parte dos indícios, também involuntários). Nesses signos involuntários que a maioria dos homens, tanto falando como escrevendo, introduzem sem intenção no discurso, ou seja, sem se aperceber, aí se reconhece o sinal mais certo da individualidade do artista. Ou, no caso dos médicos, do paciente.
Portanto, o método indiciário, semiótico, utilizado por dois médicos, produziu resultados legítimos e confiáveis que até hoje nos proporcionam grandes prazeres intelectuais. Os historiadores da arte o denominam de método indiciário ou morelliano e que pode, a nosso ver, ser comparado ao do Dr. Conan Doyle, que percebia nos sinais e indícios imperceptíveis para o senso comum, um, o autor de um quadro ou outro, de um assassinato. E assim pensando, pensamos inevitavelmente em outro médico: Dr. Freud, que com o mesmo paradigma e dotado de uma genial intuição, encontrou o inconsciente que a tudo rege e ordena (ou desordena).
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras
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