O nome, conforme pronunciado, diz da natureza da coisa que evoca: afirmo mesmo não sendo um conhecedor de linguística. Mas, para validar a constatação de que, segundo seja proferido, um vocábulo tem essa ou aquela capacidade de posicionar os sujeitos no mundo, basta lembrar das chamadas que as queridíssimas genitoras proferiam em distintas situações: Chico ou Cida, acionados nos instantes dos braços em aperto amoroso, Francisco de tal ou Aparecida de tal, nos momentos daqueles tais braços prontos para os deixar em apertos.
Palavras, nomes, ao modo do pronunciar, expressam a relevância dos sentimentos que perpassam o dito.
Recentemente, e infelizmente, minha atenção vem sendo capturada pela circulação do nome do atual mandatário do governo dos Estados Unidos da América, do Norte.
Imposição de um êxodo forçado para o Povo Palestino da Faixa de Gaza, taxação arbitrária sobre o comércio entre parceiros relevantes e históricos, desdém sobre a relação com o Brasil e nossa importância no cenário internacional: são apenas alguns dos feitos maus realizados pelo referido chefe de governo em menos de 15 dias de comando.
Todavia, dentre os incômodos, o modo corriqueiramente naturalizado como seu sobrenome é pronunciado em todo o canto e por muita gente é o que vem alimentando minha estupefação. Da bancada do Jornal Nacional às falas que escuto das ruas, já está praticamente consolidada, no melhor do inglês norte-americano, a maneira de se chamar o xará do pato Donald.
Conforme a pronúncia, uma palavra, um nome, tem a capacidade de expressar divergentes sentimentos: amor ou cólera, respeito ou medo, admiração ou desprezo, importância ou indiferença.
Verdade seja dita que William Bonner se esforça em falar nomes e, principalmente, sobrenomes dos chefes de Estado do mundo segundo as pronúncias das respectivas línguas maternas. Mas tenho a impressão de algum esmero a mais ao chamar aquele “name”: “tramp” é o que me parece dizer o herdeiro de Cid Moreira. Outro William, talvez por assumir noticiários numa empresa de comunicação estadunidense fincada em terras brasileiras, empreende visível denodo ao veicular a referida “designation” cujo capricho fonológico nos entrega um “tchramp”…
Certo dia, na praça de alimentação de um shopping center (termo que usurpou o sentido das palavras bazar e galeria), concluindo uma refeição em um fast food (que tentava se passar por uma cantina italiana), não tive como não escutar animada conversa do casal ao lado, aparentemente felizes com a eleição do quadragésimo sétimo presidente daquele país. Verdadeiramente esperançoso de que a onda que o elegeu derreta também os castelinhos de areia de nossa praia democrática, o homem, inclusive, destacava a similaridade de opiniões com o magnata dos imóveis, num tom de entusiasmo que o colocava enquanto a melhor das criaturas do referido demiurgo do caos. Porém, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi o requinte com que buscava pronunciar aquele nome, brilhando o olhar ao soar algo como “tchrém-p”.
A despeito de deliberar riscos reais para a vida e a paz no planeta, a chamada daquele que ordenou a invasão do Capitólio no 06 de janeiro se dá com mais respeito ao acento original do que de outros líderes mundiais que sequer representavam perigo aos vizinhos. Não me recordo desse apuro, por exemplo, quando se falava o nome do então líder venezuelano Hugo Chaves, cuja pronúncia do sobrenome era a mesma com a qual se diz do plural de chave. Não consigo lembrar se nas TV’s ou nas ruas alguém se referia ao presidente venezuelano dizendo algo do tipo “tchabes”.
A naturalidade com a qual pronunciamos em bom sotaque americano o ordenador do bombardeio que assassinou o general iraniano Qasem Soleimani foge de nosso costume em aportuguesar termos estrangeiros, inclusive prenomes. Tenho um querido mestre e amigo alemão cujo nome se escreve Ferdinand Röhl. Na instituição onde trabalhávamos, o primeiro nome não sofria apropriações, mas, acerca do nome de família, a Babel de tentativas se instaurava. O som mais recorrente era “ró”, os mais solenes ou neófitos no ambiente sonorizavam um “róu”. Todavia, quando de sua presença em alguma mesa ou evento, o anfitrião, via de regra, se esmerava para dizer aquele nome no melhor do Deutsch que lhe fosse possível, saindo algo como “róó-l”. Certo dia, tentando decidir qual delas seria a melhor, perguntei ao próprio amigo qual das prolações seria a mais correta, que, não sem algum sotaque renano, responde: nenhuma delas…
“Eu tenho medo” (DUARTE, Regina; 2002): hoje, infelizmente, me vejo compelido a subscrever esta citação. O temor maior é que, pela intimidade e zelo com que se invoca, o amante de Stormy Daniels não se dê conta da tempestuosidade de sua presença no mundo. O profundo receio é que, assim como foi aceitável para uma grande parcela da população (inclusive da área médica) que a cloroquina protegia ao ponto de se dispensar as máscaras sanitárias, seja admissível o promotor de limpeza étnica, o supressor de soberanias, o desmantelador de instituições democráticas. Pois, a palavra, conforme se aciona, evoca da coisa uma natureza, o nome, conforme se evoca, confere ao denominado uma essência.
Li ou ouvi em algum lugar que a melhor forma de encarar as coisas que nos quebrantam é reconhecê-las em sua realidade: sem fantasias. Desta forma, me parece que o primeiro passo ou o inicial exercício para se desafiar o perigo de uma naturalização dos significados (e materialidades) que o amigo de Roy Cohn e Steve Bannon representa seja enunciá-lo sem alegorias fonológicas. O cognome daquele Donald deve ser dito conforme o que realmente está escrito: “trumpi”.
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Foto da Capa: Reprodução TV Globo