Qual espírito do nosso tempo? Terroristas invadindo raves, estuprando jovens, matando e desfilando cadáveres pra levar cusparadas? Estado cortando suprimento de alimentos, água e luz para 2 milhões de pessoas enquanto bombardeia áreas civis? Hordas de “cidadãos-de-bens” incensando o lado da barbárie que melhor conversa com sua ideologia?
Qual nossa quadra da história? Celulares nos conectam com o mundo, filmes, jogos, mapas, artes: mas somos melhores de quando rebobinávamos fita k7 com a caneta Bic? Nosso salto foi maior do que o de Santos Dumont no Ave de Rapina sobrevoando o Campo de Bagatelle há um século? Ou do que os irmãos Lumière no Grand Café apresentando ao mundo o cinematógrafo e fazendo a plateia sair correndo quando viu o trem projetado chegando? Do que Cabral lendo as estrelas e o sol pra buscar o novo caminho para as Índias, contando a velocidade por cordas e nós? Thomas Edison ou Steve Jobs? Que régua nos qualifica ou nos diminui?
O espírito do nosso tempo é o melhor do que o dos genocidas/assassinos Pol Pot, Mussolini, Stalin e Hitler ou simplesmente eles se tornaram outros com outros nomes? Não! Hitler não era visto como um Hitler na perspectiva histórica de hoje, assim Mao, Pot, Stalin e Mussolini. Foram personagens dos seus tempos, revolucionários, reformadores, arrebataram multidões, transformaram e convenceram. A seus tempos, todos eles foram esperança, mudança e perspectiva… Invariavelmente lutavam contra um sistema que chamavam de injusto. Será que daqui a cem anos você ainda vai pensar que Maduros, Orbáns, Bolsonaros, Putins e Trumps são realmente diferentes deles?
A desculpa do incêndio do Reichstag, que enterrou a democracia alemã e consolidou a ascensão nazista, foi tão diferente da invasão do Capitólio norte-americano e dos Três Poderes brasileiros? A manipulação de consciências com a teoria da conspiração judaica pelos nazistas seria pior do que a teoria da conspiração comunista disseminada por Olavo de Carvalho e os bolsonaristas? E os ódios canalizados e as violências disciplinadas contra judeus, ciganos e negros seriam tão distintas daquelas dedicadas a jornalistas, artistas e professores? O vagabundo com a camisa da seleção agredindo uma enfermeira na Covid está distante do camisa parda pintando uma Estrela de Davi na loja do judeu?
Que porra de espírito do nosso tempo é esse, em que se invoca deus pra matar bebês, sequestrar crianças e idosos e fazê-los de escudo-humano? Que o presidente do país da liberdade e da democracia veta corredor humanitário pra alimentar civis, em nome de uma improvável reeleição? Esse sujeitinho é melhor do que Chamberlain lavando as mãos pra desgraça austríaca e checa em nome de um acordinho ordinário com o Hitler? Quantas “mãos justas” alimentam o forno da barbárie com as pás dos seus próprios interesses?
O que nos diferencia daqueles camponeses medievais com suas tochas e ancinhos queimando bruxas quando inventamos mentiras sobre vacinas e usamos o púlpito das igrejas para pregar ignorância, ódio e intolerância? Ou daqueles padres relacionando verrugas com marcas do demônio quando uma Ministra de Estado diz que há tráfico de crianças com os dentes arrancados e dietas pastosas, pra servir ao sexo de pedófilos, na fronteira de dois lugares que não fazem fronteira, simplesmente pra lacrar e fidelizar sua corja de fanáticos?
O espírito do nosso tempo assiste aqueles que lutaram por justiça social se calar e/ou apoiar trabalho semiescravo se o país hastear a bandeira vermelha, venerar ditadores sanguinários, guerrilhas cruéis, desde que cruzem a foice e o martelo.
E nas redes sociais nossas almas são etiquetadas por algoritmos e vendidas para empresas de extensão de pênis; Big Brother nos vê o tempo todo; nossos desejos são criados pelo carinha de cabelo pintado que joga videogame na hora do almoço no Vale do Silício.
Nestes tempos, se pranteiam caucasianos ucranianos, enquanto quase não se dá bola pro massacre dos negros iemenitas; as balas perdidas sempre encontram carne preta; no pescoço preto cabe o joelho do policial branco; pobre chacinado em favela é ladrão e/ou traficante independente dele ser ladrão e/ou traficante; esquerdas berram contra chacinas paulistas, enquanto se calam sobre as baianas; direitas berram contra chacinas baianas, enquanto se calam sobre as paulistas; criança favelada baleada indo pra escola vale menos que ator atropelado na Barra da Tijuca na balança do noticiário.
Antes os pais arranjavam os casamentos, hoje quem faz isso é algoritmo do Tinder. Comer é menos, postar a comida no Instagram é mais. Muito se entra no Google, pouco se entra num livro. Quanta solidão cabe entre os milhares de seguidores do Facebook.
Que cor de pele precisamos ter para sermos considerados humanos, para chorarem por nós? Que sexualidade nos dá direito à dignidade? Qual o modelo de carro que nos garante que a polícia não atire antes de nos mandar parar?
Fica tão claro que andamos em círculos, tão evidente que não aprendemos com nossos erros, tão óbvio que é fácil o velho se fantasiar de novo pra nos passar a perna outra vez…
Daí rolamos a pedra pra cima da montanha, orgulhosos das nossas tecnologias, da nossa humanidade, da nossa virtude. Quando atingimos o cume, a pedra rola e nos arrasta de novo para nossa inescapável desgraça.
Aí o Zeitgeist abre uma Heineken, conecta o Iphone na JBL e deixar tocar:
Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais*
*N.doE.: da canção “Como nossos pais”, de Belchior