No dia 04 de julho após a leveza de comemorar em família e amigos meu aniversário, abri o twitter e saltou aos meus olhos o desabafo de Zezé Motta:
“Tô no estúdio gravando uma campanha para uma marca de beleza. Uma campanha grande, para uma linha de produto internacional. Depois de idosa me descobriram como garota-propaganda. Quando jovem lembro que só fiz comercial uma única vez, e nem foi ao ar…
Segue a thread:
Achavam que pelo fato de eu ser negra, o produto ficaria encalhada, não venderia. Vê se pode Graças a Deus as coisas estão melhorando, a passos lentos, mas estão.”
Há quem se lembre de Zezé Motta apenas como atriz – difícil mesmo dissociar sua figura da bela e sedutora Xica da Silva -, mas essa é apenas uma das facetas da artista de 78 anos, canceriana como eu, e que tem mais de 50 deles dedicados à cultura no Brasil.
Ícone negro da cultura brasileira, Zezé Motta é considerada a rainha negra do Brasil. A mulher da pele preta que enfrentou a ditadura desse país livre e nua. É uma atriz de dar orgulho. Mas tem uma coisa que Zezé Motta faz ainda melhor: cantar.
Sua voz poderosa ecoa na história da música brasileira há muito tempo desde os antigos anos setenta, quando Zezé gravou seu primeiro disco solo em que compositores do porte de Rita Lee e Moraes Moreira entregaram canções inéditas para ela gravar. Além disso, sua voz imortalizou clássicos como Trocando em Miúdos de Chico Buarque e Francis Hime, e Pecado Original de Caetano Veloso que nunca mais foram as mesmas depois de sua interpretação.
Não bastasse a potência artística, Zezé possui também uma intensa e longa história de ativismo para a justiça racial no Brasil. Enfim, Zezé 78 anos está bombando… mas como ela mesmo disse… ela está aí e a “descobriram” nesta fase da vida.
O Brasil possui 56% da população negra e parda, e apenas 7% de representação visual na publicidade segundo pesquisa da PUC-RJ. 7% de reprentatividade.. o que isto significa?
Falta de diversidade com certeza, um projeto cultural imagético de invisibilidade da maioria da população expresso através do pacto narcísico da branquitude, termo cunhado pela pesquisadora e Doutora Cida Bento que teve lançamento do seu livro agora da 10.06 2022, no RJ.
Cida Bento nasceu em São Paulo (SP). Doutora em psicologia, defendeu em 2002 a tese intitulada “Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público”. É conselheira e uma das fundadoras do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades). Foi professora visitante na Universidade do Texas e, em 2015, foi eleita pela revista britânica The Economist uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade.
“O termo “pacto narcísico da branquitude” foi cunhado por Cida Bento a partir da figura mítica de Narciso, para desvelar o compromisso da branquitude em manter a estrutura racial injusta que os privilegia: um pacto de proteção e premiação, nítidos ao menos atento olhar que observa o grupo que se premia, se contrata, se aplaude, se protege.
O caçador mitológico grego, apaixonado pela representação da própria imagem, olha pra si como único objeto de amor. No Brasil, trata-se de um pacto muito forte, quase indestrutível, que acaba por eleger um discurso autorizado de saber.
Vale dizer que discurso aqui é além de simples pronunciamento, mas de ações, falas e existências. A noção de “lugar de fala”, nesse sentido, é importante como contraposição à ideia de um sujeito universal representado na figura de Narciso, tão bem trabalhada por Grada Kilomba em sua exposição Illusions vl. I. Narciso consegue olhar apenas para seu reflexo e tudo diferente a ele sequer é notado.
O som pelo qual se apaixona é o som de Eco, ninfa condenada apaixonada por ele, mas que consegue repetir apenas as suas últimas palavras. A partir do mito, conseguimos refletir sobre a dificuldade de Narciso escutar algum discurso que não seja de Eco. Inclusive, alguns discursos são entendidos como ameaçadores à sua existência. A necessidade de escuta é uma realidade no país de tantas desigualdades sociais, mas é necessário aprender a escutar, sobretudo por parte de quem sempre foi autorizado a falar.”
Esta análise potente de Djamila Ribeiro revela o conceito, e eu complemento: Narcíso se ama ao se ver no espelho, e nada além dele importa. Por isto a publicidade até então era uma geradora de espelhos brancos, excluindo outras possibilidades que não seja o padrão eurocentrado.
Sim, Zezé, estamos mudando, a passos lentos… ainda se distanciando dos ecos de sermos chamadas de macacas, de não termos nossas belezas e potências reconhecidas… mas rainhas como você entrarão para a história abrindo espaços para uma beleza diversa, real e descolonizada.
Salve o legado e a força de Zezé!!