Estou confusa, atrapalhada mesmo. Me viro para um lado, me viro para outro. Tenho alguns negócios, certo. Sou empreendedora de sucesso. Sete CNPJs são minha responsabilidade. Mas tô confusa, tô atrapalhada mesmo. Você já se sentiu assim?
Vamos lá! Recentemente estive em Brasília num painel muito interessante. Sou palestrante e tenho um CNPJ para isso. Lá, nesse painel, estávamos em cinco mulheres inspiradoras. Entre nós, uma empreendedora negra do Tocantins que recebeu qualificação empreendedora e começou a produzir trufas. Segundo ela, teve uma ideia que tirou, assim, da cabeça dela mesmo, inovação grau mil, raiz: trufa de 51 com limão! UUUUUH, baita ideia, a plateia vibra, bora, quero umas dúzias! Já tá vendendo online, como a gente encomenda, pleeeeease …foi lindo. Um respiro.
Porém, seguem os perrengues. Sou contadora, sabe? Tenho um CNPJ para isso. Contadora no país do “jeitinho”. Sim, sei que você aí, amada leitora e amado leitor, já está com pena de mim. Mas calma, é apenas o segundo relato de sete. E nem vou falar aqui de carga tributária gigante de um lado, ou da sonegação e gritaria de outro. Quero falar de empreendedorismo hoje.
Então, o Brasil figura entre as cinco economias mais empreendedoras do mundo¹. Galera empreendedora hard, destemida, poderosa, raivosa, uivante e delirante. Até a primeira página, basta colocar a lupa nos negócios e nos negociantes, que vemos um amontoado de nervos de aço se desmanchando: choros e ranger de dentes, quinhentas horas de trabalho, margens de lucro ridículas, depressão, ansiedade e burnout. Opressão e miséria como nenhum patrão jamais teria o poder de impor nem em seus sonhos mais delirantes. E nem tô falando dos escravizados de aplicativos pseudo-inclusivos-modernos-disruptivos.
Mas caramba, você tá azeda hoje hein!? SIM, me deixa. E seguimos nesse passeio de terror, chamado empreender no Brasil…UARÁRÁRÁRÁ… UARÁRÁRÁRÁ…ouça-se no timbre inconfundível de Vincent Price em Thriller …ops…eu sempre acabo mostrando a idade, né? Risos.
Daí a pessoa aqui, sempre à frente do seu tempo, ouviu falar que o futuro está na tecnologia da informação. Inteligência artificial, IOT, algoritmos, redes, chatGPT, metaverso. Que vocês acham que eu fiz? SIIIIIIM, eu entrei no mercado de desenvolvimento de software e tenho um CNPJ para isso. Agora tenho certeza de que qualquer empatia pelo meu sofrimento que vocês estivessem sentindo já foi substituída por um risinho irônico né!? Olha aí, quer reclamar ainda… #quemalouca #praquetudoissogente #vidaloka. Tudo bem, só riam com respeito por favor. Não gargalhem… UARÁRÁRÁRÁ… Risos.
Desafios à parte, tenho meu lado incontrolavelmente social, precisava entrar no ramo de tecnologia e inovação para dar acesso. Nessa empresa de TI, trabalhamos apenas com profissionais negros em início de carreira, que precisam ter experiência para acessar o mercado de trabalho. A ideia é perfeita, porque sabemos que no mercado capitalista onde tem demanda tem oportunidade. E, TODOS precisam daquele sitezinho maneiro, ou de um aplicativo basicão para agendamento na barbearia, ou ainda um “tinder” customizado pra galera dar match e sair da fila do desespero.
E aí que a porca torce o rabo: porque TODOS precisam, mas quase ninguém consegue pagar pelo desenvolvimento de um software. Lembram do empreendedor “burnoutado” que falei lá em cima? Ele chega pra mim pensando, agora “eu se consagro”, vou informatizar meu negócio, escalar, atingir o pico das galáxias, me banhar em moedas de ouro. Depois fugir para as colinas, me aposentar, tomar chá de ayuasca na Floresta Amazônica, assistir a aurora boreal com extremidades e rabo congelados, paz, the end, feliz para sempre.
Gente, vocês não têm noção do quanto é duro derrubar um ser já quase iluminado do reino dos céus! Eu começo assim: amiguinho, amiguinha (assim, com todo carinho tá) infelizmente teu budget (assim, toda inglesa) não dá para desenvolver nem a primeira linha de código. Desculpaí, pega esse trocado, compra uma garrafa de 51, limão e faz uma caipa bem docinha, bem gostosa, chama os amigos, desabafa e afoga as mágoas. Ou compra trufas da empreendedora do Tocantins, que tal!?
Já estamos em qual número de CNPJ mesmo? Terceiro. Vamos ao quarto e quinto juntos, pra fechar tá. Os outros dois deixo para outro momento.
Como loucura pouca é bobagem… Eu adoro cozinhar, adoro comida, adoro juntar gente, música, casa cheia. E daí, sim, dessa vez não foi apenas um CNPJ, mas dois. Com quinze anos, me formei garçonete bartender de primeira categoria. Meu sonho: ser a melhor garçonete do melhor restaurante. AGORA EU TENHO DOIS RESTAURANTES meus!!! Vim, vi, venci.
Mais ou menos. Apesar de criar mais de 150 mil vagas de emprego só em 2023 e de ser um mercado porta de entrada para a empregabilidade, já que 93% dos empreendimentos contratam pessoas sem experiência², o mercado de alimentação fora do lar (AFL) pede socorro: o endividamento com fornecedores é alto, a capacidade de pagamento de imposto está comprometida (mais de 75% de inadimplência), os empresários estão em fuga tentando liquidar seus negócios a preço de bananas, pois a capacidade de investir e se reinventar está reduzida a zero. A encruzilhada está aí. Tenho um restaurante de buffet no centro de Porto Alegre, que vive basicamente de vale refeição, cada vez mais justo, do povo assalariado. E tenho um boteco, casa de samba, almoço caseiro na periferia, na Região Metropolitana, onde a miséria sempre chega primeiro e com truculência.
E eu sou da encruzilhada, nasci nela e dela. A Encruzilhada, para quem não leu meu texto anterior, é onde a sabedoria se encontra com a esperteza. É onde nasce a INOVAÇÃO.
A esperteza faz eu saber que preciso viver com dignidade, preciso empreender para ter um mínimo de qualidade de vida e não virar uma escravizada moderna. A esperteza me diz também que as pessoas da periferia continuam precisando celebrar, sambar, sorrir e festejar. A esperteza me diz que o sistema precisa alimentar minimamente as pessoas. Então, eu sei que meus negócios alimentam e nutrem a massa da população brasileira com pão e circo. Feitos com afeto, respeito e ancestralidade.
Já a sabedoria faz eu olhar para a estrada, faz eu entender que em um país como o Brasil, empreender não enriquece. É história pra inglês ver, desde as escravas de ganho até a baiana do acarajé dos nossos dias. ACORDA POVO. Vocês sabem quantos super-ricos tem no Brasil com mais de 1 bilhão de dólares?³ 51. PQP, os caras estragaram até minha memória afetiva tchê! Pois é, 51 nem sempre é uma boa ideia.
CINQUENTA E UMA PESSOAS POSSUEM, somados, quase 1 TRILHÃO DE DÓLARES no Brasil, enquanto 10,50 milhões de pessoas vivem na pobreza. Em NOVE estados, mais de 50% da população vive na pobreza. E, ainda tem uns ricaços que se “disfarçam” de empreendedores geniais, mas os sobrenomes não mentem: Safra, Lemann, Savarin, Behring, Moreira Salles, Marinho. Tudo herdeiro.
Eu posso ser só mais uma Silva, mas não pensem que me enganam não. Eu empreendo de olhos abertos. Eu sou sábia, eu sou esperta. Tô só por fazer meu pretinho herdeiro.
Termino cantarolando… everybody… “Era só mais um Silva que a estrela não brilha…”
Saravá.