Eu estava folheando os documentos do meu carro outro dia e constatei algo muito curioso: se fosse humano, ele poderia votar.
Meu carro foi fabricado em 2009. Logo, tem 16 anos!
Até curto a estética hippie e principalmente seus símbolos. Mas não é exatamente esse o caso. Ou talvez seja, pensando bem.
O certo é que, desde criança, sou avesso a modismos.
Desde criança sou avesso aos mainstreams impostos.
Sobre o carro, é uma caminhonete de marca coreana, com ótimo motor, firmeza, muito conforto e raríssimos problemas mecânicos. Comprei zero, num momento profissional em que eu podia me dar esse luxo. Hoje, minha prioridade máxima é viajar em família. Se o auto tá legal, mantenho o auto, e é um não assunto pra mim. Trocar de carro pra ver o novo se desvalorizando no mesmo instante em que sai da concessionária? Trocar o meu, ótimo, por um muito inferior e ainda pagar por isso? Venham com outra. Comigo, não.
Eu sou o mesmo guri que, quando adolescente, usava uma mesma calça jeans desbotada e bem justa, que tive de emendar com um bolso no traseiro, e isso a tornou ainda mais linda.
Que saudade daquela calça!
Simplicidade! Coisa mais linda é a simplicidade.
Aí a indústria imobiliária inventou os condomínios chiques lá na Estrada do Mar, com aquelas casas geminadas em que a privacidade é zero. Desde o início e com muito respeito a quem pensa o oposto, eu dizia: ora, se é pra ter uma casinha dessas, longe do mar e com vizinhos aleatórios, compro um sítio em Viamão. Quando vou pra praia, a vista é pro mar, e são poucos metros que nos separam dele. O bom é que os meus filhos, de 18 e 22 anos, adoram. Faço uma figa pra moda dos condomínios.
Compras online? Sempre que possível, evito.
Quero um ser humano me ajudando a escolher.
Telemarketing? Oriento o atendente, respeitosamente, a procurar outra freguesia, porque eu só consumo se tiver interesse em consumir. Ninguém vai entrar na minha vida inadvertidamente e sair fazendo propaganda. Nem pensar!
Teve uma vez que vivi um problema de saúde na família e estava ansioso esperando o telefonema do hospital pra me dar notícias (graças a Deus, foram as melhores). No meio dessa espera aflita, foram vários os telefonemas querendo me vender coisas, e eu atendia, porque não sabia o número geral do Hospital de Clínicas. Confesso que, em situações assim, o respeito termina.
Tem um filme argentino e uma série alemã que me impactaram. O filme é “Simón de la montaña”, em que o protagonista conhece amigos com deficiência e tenta se integrar a eles, buscando, pra isso, fugir do padrão de normalidade e do seu cotidiano. E, no último fim de semana, vi a minissérie alemã Cassandra. Uau! É um robô dos anos 1970 que pereniza uma mulher e, ao ser religado, se espalha por toda a casa da família protagonista, manipulando a vida das pessoas. Algo muito parecido com as nossas inteligências artificiais e outros absurdos. A única pessoa que enxerga a perversidade de Cassandra (o nome da mulher cuja “alma” foi perenizada no robô) é tratada como louca e chega a ser internada num manicômio.
Vendo esse filme e essa série (que é recente, entrou há um mês no catálogo da Netflix), senti indulgência por mim mesmo. Já tive diálogos estranhíssimos com robôs de teleatendimento, exigindo que um ser humano falasse comigo. E, quando o atendente robô pediu “espere um instante” e me veio o som de um teclado supostamente sendo dedilhado pela máquina, como se aquilo fosse real, pensei: será que sou eu o maluco aqui?
Não me chamem de louco, obsoleto, velho ou Urtigão.
É todo o contrário!
Quando eu era adolescente, li uma entrevista despretensiosa da Marina Lima na Playboy, e ela disse algo que me fisgou pra todo o sempre: “Ser careta é não ser autêntico.” Putaquepariu!
Aquilo mudou a minha vida. Porque você já deve ter percebido como adolescente é cheio de preconceitos. Eu era um roqueiro furioso, mas, lá no fundo, não tão fundo do meu inconsciente, curtia uma música mais comercial, dançante e pegajosa.
Por que não?
Grande Marina.
“Vamos nos permitir”, como diz o Lulu.
Sou um cara, musicalmente, que cresceu amando sobretudo os Beatles, mas tinha discos em que, na minha infância mais remota, construía uma personalidade e um gosto muito heterodoxos. Tinha Deep Purple, Creedence, Bob Dylan, Os Incríveis (Giramundo!), Gilberto Gil, Jair Rodrigues, Clara Nunes, discos de novelas como Cavalo de Aço e Estúpido Cupido, um que eu adorava de boleros. E, evidentemente, muitos Beatles. Mistura linda, não? Essas coisas entram pelos poros.
A Marina Lima fez eu valorizar essa rica formação e não ter vergonha se a penugem do braço se eriçasse com a voz do Jair Rodrigues ou com a doçura musical de uma Dione Warwick.
Mas, pasme, este texto vai terminar com a decisão do campeonato gaúcho, que eu chamo de “charmosão raiz”.
Gente, não adianta me empacotarem como “Gauchão FIFA”.
Comigo, não rola!
Tem muita publicidade envolvida, tem muitas narrativas envolvidas, muitos interesses lá sei eu de quantos e de quem, tudo ancorado na tal da endeusada “rivalidade Grenal”.
Charmoso? Sim. Já foi bem charmoso.
Tu ia pra aula e zoava com o colega, recebia a zoação e ria junto da piada. O outro ia pro trabalho e ria com a turma. Tinha os encontros ocasionais na padaria da esquina e no armazém.
Era divertido. Era leve. Era bom.
Tenho senso de humor, não se confunda.
Já ri muito de piada contra mim mesmo.
Mas isso acabou. Foi-se a graça.
A rivalidade Grenal, sadia nos tempos dos nossos pais, não existe mais. E, se não é sadia, se é tóxica, pra que serve?
Estou, inclusive, preocupado com a violência nos jogos decisivos desse torneio que não dá prestígio nem dinheiro. Já vi pedrada criminosa (tentativa de homicídio) em ônibus oficial de clube acertando a cabeça de um jogador. Já vi no estádio jogarem um celular na testa de outro jogador. Já vi torcedor invadir o campo com uma criança pra agredir fisicamente um terceiro jogador adversário. E por esse caminho vai a coisa, muito feia.
Ah, os gremistas querem o octa e os colorados querem evitá-lo.
Mas pra quê?
Pelo ponto de vista tricolor, digo o seguinte: não tem a menor possibilidade de “brincar” com caras que cantam “clube racista / que vergonha ser gremista”. De que adiantam resultados de campo pra tirar onda se os caras já chegam dizendo isso?
_ Hahahaha! Ganhei o octa!
_ Tá, mas tu é racista (sic).
Hein? Alguma condição de diálogo diante disso?
Literalmente, nem brincando!
Eu não daria uma porrada no cara porque deploro a violência, mas confesso que seria a minha vontade. Nada pode me indignar tanto na vida quanto alguém me chamar de algo tão horrível.
Acabou! Perdeu a graça! Faz muito mal.
Talvez os colorados, pelo seu lado, tenham queixas semelhantes. Acho um absurdo quando gremistas debocham do enorme Fernandão por estar morto (sim, já vi isso!). Estou falando do meu ponto de vista e do ponto de vista do pesquisador que comprovou que, além de gravíssimas, algumas agressões gritadas em coro são calúnias muito sérias, são inverdades, são imaginários que talvez já possam um dia terem sido usados de forma recreativa. Hoje, não mais. Hoje, quem usa de forma recreativa pouco se importa com a seriedade do assunto.
Antigamente, tinha aquele folclore do “time de alemão” e “time de negrão”, e ninguém dava muita bola. Eu, particularmente, sabia, desde criança, que esses imaginários eram falsos. Vivi dentro do Olímpico, tive o meu pai judeu com amigos negros e também judeus me contando que era tudo hipocrisia. Pena que meu pai não estava mais vivo pra ler meus livros da Coligay, o “Somos azuis, pretos e brancos” e o do Salim Nigri.
Tá tudo ali. Nomes, sobrenomes, fatos, contextos.
Reais! Irrefutáveis!
Hoje, a pauta da diversidade é extremamente relevante, e isso é um enorme avanço humanista. Só que, diante desse novo contexto, os caras usam a galhofa e o folclore de outros tempos pra ofender gravemente e desconstruir o rival (bom lembrar que esses imaginários foram criados quando, nos anos 1930, diante de necessidades do clube pra vencer uma série de dificuldades, abriu-se mais que o adversário, o que é meritório, mas é só um hiato numa longa história). Isso não é adversário, é inimigo.
Logo, a “rivalidade”, criada com o surgimento do Inter em 1909, com o objetivo de enfrentar o clube já existente, acabou.
E o campeonato gaúcho deixou de ter sentido.
Então, às vésperas dos Grenais, vou dizer:
1) O jogo mais importante pro Grêmio é o da próxima quarta-feira, quando enfrenta o Athletic-MG, bem no meio dos Grenais, e precisa resolver o problemão que é se manter vivo na Copa do Brasil, um torneio relevante, que dá prestígio e dinheiro. Se tivermos que priorizar algo, com certeza precisa ser esse jogo decisivo pro nosso futuro.
2) Óbvio que vou torcer pelo octa gremista, provavelmente no estádio, apoiando o time. Mas juro que não vou pra Goethe ou algo assim caso vençamos. Só vou, caso isso ocorra (e acho difícil, porque o Inter está mais organizado), dar uma vibrada bacana, talvez pôr alguma bobagem nas redes antissociais e ir dormir ou andar de bicicleta por aí.
Obs: se por acaso ganharmos o octa, o que pra mim seria uma surpresa em especial diante do entrosamento do adversário e do fato de termos uma decisão importantíssima entre os dois jogos (que sacanagem!), juro que a minha primeira preocupação, antes de festejar a conquista, será: que esse título seja festejado, mas não signifique “ano ganho”. Lembre: mais lá pro meio do ano, quando estivermos disputando jogos de gente grande, de real relevância, ninguém vai se lembrar do charmosão. Se, por uma infelicidade, algum dos clubes for rebaixado na Série A, a conquista do charmosão não evitará que seja um dos piores anos da história. Sacaram? É muito desgaste pra pouca relevância.
E eu não surfo na onda mainstream. Tenho um carro de 16 anos, cago pro telemarketing, ouço música “brega” e usei na minha adolescência uma calça jeans desbotada com remendo no rabo.
O charmosão já foi legal, quando éramos sadios.
E era mais legal ainda ao sabor das circunstâncias, tipo romper a hegemonia regional do adversário. Como vibrei em 1977, ano em que eu fiz 13 anos e descobri o doce sabor da vitória.
Mas, infelizmente, isso já era.
Mudou como o mundo.
Em alguns aspectos, pra pior. Muito pior!
…
Shabat shalom!
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Foto da Capa: Divulgação / Netflix