A exposição do ideário de Javier Milei, o “anarcocapitalista” que concorre à presidência da Argentina com chances reais de vitória, desnuda algumas reflexões necessárias sobre o significado das palavras. Nem vou falar em “liberdade”, uma expressão tão linda e tão castigada pelo cinismo, pela hipocrisia e pela crueldade. Vou falar em “sistema”, porque Milei é alardeado como o “candidato antissistema”. E essa é outra distorção elementar (e perigosa).
Pego uma das bandeiras de Milei para, em um exemplo só, desconstruir o uso que se faz dessas duas expressões quando falamos em Milei e outras figuras do tipo. Vamos falar sobre a inadmissível defesa da liberdade para comercialização de órgãos humanos.
Vou me usar como exemplo. Se meus filhos não têm o que comer, com certeza vendo um rim para alimentá-los. A desigualdade social me imporia uma decisão drástica como essa. Seria uma imposição da injustiça, e não uma liberdade para agir conforme a minha vontade. E o crudelíssimo senhor Milei, professor universitário de Economia, sabe perfeitamente que a desigualdade social e a miséria não combinam com uma verdadeira liberdade.
Essas expressões, “liberdade”, “libertário” e até “liberalismo” vêm sendo espancadas em praça pública e distorcidas a ponto de significar o oposto do que são. Sem justiça social e distribuição de riquezas, é impossível haver liberdade. Ninguém tem livre arbítrio na pobreza e na miséria.
E “sistema”? Pelo amor de Deus! Dizer que um defensor do capitalismo selvagem é “antissistema” é um raciocínio acintoso a qualquer lógica e bom senso. Milei é, justamente, o mais despudorado dos defensores de um sistema cruel que se mantém por séculos.
O que é “sistema”? Alguns citam “o STF” ou “a Globo” e o jornalismo em geral. Uau! O STF tem sido o guardião da democracia contra tentativas fascistas de golpes, publicações de mentiras comprovadas (e que se não são coibidas provocam danos irreparáveis) e outros desmandos da extrema direita em nome de ideários conservadores ou reacionários. O jornalismo tem cumprido seu papel e se esforçado por defender esse pilar básico da democracia.
O “sistema” não é a estrutura institucional e seus vícios, que evidentemente existem e precisam ser consertados. É algo muito mais profundo, de essência socioeconômica e longa duração. O sistema é a desigualdade, o egoísmo, o racismo, o machismo, os rescaldos perversos de uma escravização longeva. Milei defende o sistema, não é oponente a ele.
O sistema são as capitanias hereditárias que se adaptam para se manter.
O sistema é a sobrevivência de traços da Casa Grande e Senzala.
O sistema é a desigualdade social.
O sistema é a falta de oportunidades.
O sistema é se incomodar com pobres indo pra Disney.
O sistema é se incomodar com negros na sala de embarque.
O sistema é o salário menor para mulheres no mesmo cargo que homens.
O sistema é a família tradicional sem espaço para outras formas de amor.
O sistema é submeter as minorias.
O sistema é a negação do processo evolutivo para conservar a si mesmo.
O sistema é a liberdade para, sem mérito, ser superior ao semelhante.
O sistema é o patriarcado.
O sistema é desmatar por ganância
O sistema é a injustiça.
O sistema é a alegação da legítima defesa da honra no feminicídio.
O sistema é a precarização proposital do serviço público.
O sistema é o egoísmo travestido de “individualismo”.
O sistema é a supremacia de uma classe, casta ou, no extremo, raça.
O sistema é a liberdade para explorar aquele que é convencionado como inferior.
O sistema é a reforma laboral destinada a limitar os direitos sociais.
O sistema é negar direitos trabalhistas em nome da “responsabilidade fiscal”.
O sistema já foi até negar o fim da escravidão em nome da economia.
O sistema é esquecer que a força de trabalho sustenta a economia.
O sistema é o privilégio.
O sistema é o apartamento com dependência de empregada.
O sistema é permitir que alguém compre o rim do outro.
O sistema é liberal para quem se beneficia dele.
O sistema é cruel!
…
O político “antissistema” é o que combate esses absurdos, e não quem os defende.
O defensor de um liberalismo econômico cínico, hipócrita e mau não é “antissistema”.
É o seu maior defensor.
Javier Milei e outros políticos de extrema direita são extremados defensores do sistema (que é de direita), e não o seu oposto, como tenta mostrar uma expressão repetida à exaustão, a ponto de parecer verdade pelo senso comum. Nada de “candidato antissistema”, como dizem por aí e as pessoas repetem. Aliás, essa é uma estratégia criada por Goebbles, o porta-voz do inferno, outro fanático defensor dos fundamentos desse sistema cruel.
Dizer que o “libertário” é “antissistema” é quase como cometer a heresia de dizer que o nazismo é de esquerda. A extrema direita é “extrema” justamente porque vai ao extremo de defender a desigualdade, a supremacia, o falso mérito, a falta de oportunidades e a subjugação do mais fraco. E essa supremacia encontra seu ponto mais extremado quando invoca a “raça”, o que não deixa de ser um atalho. Quando uma funcionária do setor econômico brasileiro, em recentes tempos obscurantistas de triste memória, foi flagrada em vídeo dizendo que a morte dos mais frágeis pela pandemia aliviaria a previdência pública, ela estava sendo eugênica e, com isso, defendendo o “sistema” ao extremo.
Ufa! Está claro que espancam semântica em nome do sistema?
Sim, concordo com você: isso é muito perverso.
…
Trecho de texto que escrevi aqui na semana passada (veja neste link): “Criaram um monstro! Escrevi nas minhas redes antissociais: ‘Há um perigo enorme nos rondando, cheio de armadilhas. O jeito espalhafatoso, maluco, desrespeitoso, cruel, desumano, cínico e reacionário do Javier Milei foi visto como oportunidade de captar audiência imediata pelas emissoras de TV argentinas. Ueba! Lucro à vista! Deram-lhe espaço e criaram um monstro que agora ameaça se tornar presidente da República.Os gestores dos veículos de comunicação argentinos, se realmente querem preservar o jornalismo, devem estar assustados. E os nossos, em especial na área esportiva, poderiam tomar esse ‘case’ na vizinhança como alerta (…). Crescem figuras patéticas e infames chamadas ironicamente de ‘animadores de auditório’, que falam o que o torcedor médio de futebol quer ouvir, mesmo que seja algo desonesto, falso ou agressivo. Querem mesmo salvar o jornalismo? ‘!Ojo!”
Dado o recado, né? As primárias obrigatórias argentinas (uma espécie de pesquisa altamente precisa convalidada pelas instituições públicas) mostram Javier Milei em primeiro lugar nas preferências, seguido da centro-direitista Patricia Bullrich e do centro-esquerdista Sergio Massa. A diferença entre os três é muito pequena, o que me leva a crer que seja inescapável, depois do primeiro turno em 22 de outubro, a realização do segundo turno em 19 de novembro (dificilmente alguém alcance 45 pontos ou 40 com 10 de diferença sobre o segundo colocado). E acho que o país (como o Brasil já precisou fazer e Israel também precisa) deve rumar para o centro, por sobrevivência. O inimigo comum, o fascismo, exige isso. E, mesmo que minha afinidade ideológica seja maior com o Massa, creio que a Bullrich será á tábua de salvação.
Veja bem: Massa é uma “proeza” da centro-esquerda argentina. Em meio a uma brutal crise econômica (inflação chegando a 114% anuais e pobreza atingindo 40% da população), os caras conseguiram escolher como seu candidato justamente o ministro da Economia. Ex-militante esquerdista (foi montonera) apesar do sobrenome tradicional, Patricia Bullrich terá de moderar o discurso amparado na segurança pública (ela foi ministra do setor no governo de Mauricio Macri) para atrair o eleitor progressista contra Milei. É questão de extrema urgência para o país.
E se Milei vencer? Além da redução extrema do Estado, do menosprezo pelas políticas sociais e pela celebração do egoísmo e da maldade (o cara chega ao ponto de defender a comercialização de órgãos humanos, aparentando ignorar que pessoas pobres literalmente venderiam os próprios rins para dar uma vida melhor aos filhos), ele terá meia dúzia de aliados na Câmara e no Senado, as câmaras baixa e alta, que sempre fez questão de depreciar e combater por ser “antipolítico”. Ou seja. Zero chance de dar certo, zero chance de aprovar projetos, zero chance de o país ir adiante. A Argentina vai atear fogo às próprias vestes caso esse maluco vença. Evitemos que isso ocorra.
…
Shabat shalom!