Minha decepção com o Silvio Almeida foi enorme, mas já existia.
Em outras palavras, minha decepção com ele é dupla. E é enorme. Sílvio Almeida era a grande referência, eu o imaginava um dia presidente. Sua obra se mantém como um farol.
E foi na sua própria obra que o Silvio cuspiu. Foi por estar em tão alto patamar que se quedou tão conspurcado.
É muito complicado falar sobre esse assunto. Eu próprio fiquei meio contrariado ao ver que Lula mantém ministros acusados de diversos descaminhos, mas com Silvio ele foi implacável.
Só que… realmente, ficou insustentável. E a substituição de Silvio foi por Macaé Evaristo, também negra e, agora, mulher.
O recado a ser dado era importante.
Por quê? Porque a misoginia e o machismo estrutural são inadmissíveis e deveriam ser erradicados, e quando Silvio usou sua posição de poder para assediar mulheres, incorreu naquela definição que justamente ele criou para o racismo pela cor da pele, mas que deve derivar para outros tipos de preconceitos e dominações sobre grupos minoritários: estrutural.
E por que essa minha decepção é dupla? Por que ela já existia? Porque Silvio não escutou Martin Luther King, que, há mais de meio século, dizia: o antissemitismo voltará repaginado na forma de antissionismo. Sim, Luther King era muito amigo dos judeus, e os judeus eram muito seus amigos. Tinham uma luta comum.
Silvio foi leniente em seus comentários sobre o devastador pogrom do 7/10 em Israel e pegou muito pesado com a reação israelense. Dançou conforme a melodia de uma esquerda míope, maniqueísta e antissemita, e ele deveria ter sido a primeira voz ao dizer que por trás desse discurso há um exasperante antissemitismo estrutural, impregnado na sociedade.
Foi Silvio, com sua obra definitiva, que estabeleceu entre nós o conceito de racismo estrutural, desconstruindo a tese hipócrita de que o Brasil é uma democracia racial por sua miscigenação, direito a voto direto, secreto e universal e outras características e conquistas civilizatórias que poderiam fazer do nosso país um lugar realmente muito mais justo e melhor. Mas cada preconceito tem suas peculiaridades e violências. O preconceito estrutural, visto de uma forma ampla, não deveria se limitar à essencial questão socioeconômica que estabelece aestrutura de poder. É urgente enxergarmos e resolvermos os problemas de uma sociedade organizada de forma a favorecer a exploração e a opressão enraizadas na estrutura e nas relações institucionais, econômicas, culturais e políticas. Mas não basta. Tem outras minorias por vezes invisibilizadas, que sofrem diversas e complexas formas de discriminação. E isso é importante.
Uma das formas de racismo estrutural é o antissemitismo, que tem características diferentes, porque não se associa à condição econômica e social subalterna, mas à condição étnica e ao preconceito cultural. Enquanto em relação aos negros, o racismo vem dos tempos da escravidão, no início do século 16, o antissemitismo tem origens diversas, que se repaginaram por milênios, primeiro de caráter religioso, depois “racial” ou “científico” e, mais adiante, o político, na forma do chamado “antissionismo” (frequentemente as vestimentas se misturam).
Em síntese, o antissemitismo é o ódio e a aversão aos judeus por conta da migração forçada desse povo da terra de Israel para vários cantos do mundo, incluindo Espanha, Portugal e norte da África (sefaradim) e Europa Central e Oriental (asquenazim), num primeiro momento. O sionismo, como movimento político, surgiu no século 19, em reação às cruéis perseguições na diáspora, onde os integrantes desse grupo étnico sempre foram “centauros” (figura genial e emblemática criada por Moacyr Scliar). Mas só como movimento político (influenciado pelo ideal de Estado-nação), porque o anseio manifesto de retorno a Jerusalém (Sion) está na essência do judaísmo há milênios.
Não compreender isso ou compreender e ainda assim seguir a onda ignorante disfarçada de humanista é algo que traz consequências. Aumentou vertiginosamente a prática do antissemitismo, com ameaças, intimidações e violências. E isso deveria ser combatido. A começar, por quem entende e inclusive criou o essencial e merecidamente festejado (por ser uma conquista existir um nome que traduza) conceito “estrutural”.
Me amparo em texto da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP: “Em situações de crise – como esta em que o Brasil vive, abalado pelas fragilidades da nossa democracia –, constatamos que a polarização radical compromete a vida e negligencia a morte. É neste contexto que avalio o discurso antissemita e as acusações de genocídio feitas pelo presidente Lula da Silva ao Estado de Israel e ao povo judeu. Suas declarações emergem como uma terrível combinação de ingredientes clássicos que compõem o discurso antissemita de raiz, (re)alimentando versões deturpadas da História. (…) Após o ataque empreendido pelo grupo terrorista Hamas contra a população civil de Israel em 7 de outubro de 2023, a banalização do Holocausto ressurgiu em meio aos discursos do presidente Lula reciclados como arma política contra o Estado de Israel e à comunidade judaica como um todo. É fato que, desde outubro de 2023, o antissemitismo maquiado de antissionismo ganhou status de verdade, sendo disseminado por uma legião de racistas que sustentam discursos acusatórios sem a real dimensão das consequências. Neste contexto, o antissionismo que mascara o “antissemitismo de raiz” assimilado por Lula deve ser interpretado como uma recidiva da postura do governo brasileiro simbolizando um retrocesso na nossa luta contra o racismo, o negacionismo e a xenofobia. Recupera-se, assim, a histórica tensão entre antissemitismo/antissionismo e os ideais democráticos. As frases aleatórias e descontextualizadas que Lula tem empregado contra o Estado de Israel têm despertado sentimentos antijudaicos por parte dos seus correligionários e, ao mesmo tempo, têm gerado uma certa decepção naqueles que votaram no PT. Daí a importância de investirmos contra o negacionismo de natureza ideológica e contra o antissemitismo que, enquanto uma forma de racismo, tem servido aos grupos, tanto de direita como de esquerda, que atuam no cenário político nacional e internacional.”
Onde estava o ministro Silvio para enxergar isso?
Segue a historiadora: “Independente de qualquer sigla partidária, negacionistas e antissemitas sempre tentam impor suas ‘visões de mundo’ deturpadas pela ignorância dos fatos. Dessa forma, instigam a violência e o ódio, negando e/ou ignorando a verdade dos fatos históricos, dentre os quais o Holocausto, genocídio singular na história da humanidade. Os grupos signatários dos ‘tratados negacionistas’ devem ser qualificados como uma espécie de ‘perpetradores da memória’, que por ignorância ou interesses políticos tentam sustentar falsas versões. Interessa a essas lideranças gerar uma multidão de desmemoriados, alienados e despossuídos de espírito crítico. É evidente que a ignorância favorece o avanço de movimentos “antis” que, valendo-se das crises sociais, vêm a público no formato de discursos de ódio. Assim, sob este viés, poderemos avaliar a proliferação de novas cepas de perpetradores das mais distintas linhagens: racistas, revisionistas, negacionistas, populistas, neonazistas, fascistas, dentre outros “istas” e “ismos”. O debate sobre este tema passa, necessariamente, pela compreensão dos direitos humanos, levando-nos a refletir acerca da responsabilidade do Estado sobre a vida do cidadão.”
Onde o senhor estava, ministro?
“Aqui retomamos o tema da banalização do Holocausto: o fato do Holocausto ser uma categoria única dentre tantos outros genocídios, tem servido aos negacionistas, neonazistas e antissemitas para desmoralizar os testemunhos das vítimas, dentre as quais temos seis milhões de judeus assassinados pelos nacional-socialistas e colaboracionistas. Aliás, esta é mais uma das razões para o Estado brasileiro estimular (e não negar) a memória pública de um dos episódios mais abomináveis da história: o Holocausto, além de estimular o processo de implementação de dois Estados: o Estado de Israel e o Estado Palestino. Neste Brasil multirracial – que desde o seu descobrimento convive com o racismo (histórico e estrutural) e a discriminação contra negros, judeus, indígenas, ciganos, doentes mentais e dissidentes políticos – fica difícil falarmos em uma política de intolerância zero, pois esse ódio, assim como a ignorância, tem raízes seculares neste país. Se por um lado as lideranças políticas têm dificuldades em assumir a verdade histórica e promover a justiça social, por outro, os negacionistas aproveitam-se das redes sociais para instigar o linchamento virtual daqueles que clamam pelos seus direitos, incluindo o direito à vida e o direito de existir enquanto nação.”
A historiadora deveria ser lida. A começar pelo ex-ministro.
E ela continua, contando que o regimemilitar (sim, a ditadura militar!), nos anos 1970, “atingido pela crise mundial do petróleo, optou por uma postura radical: votou na Assembleia Geral da ONU a favor da Resolução n. 3379, que qualificava o ‘Sionismo como forma de racismo e discriminação racial’. Com o fim da Guerra Fria alguns países árabes e muçulmanos, junto com Cuba, Coreia do Norte e Vietnã, não mudaram suas posições apesar da Resolução n. 4686 ter anulado a decisão da Resolução n. 3379 (…). A grande guinada do Estado brasileiro no reconhecimento da centralidade do racismo na estruturação das desigualdades sociais foi dada em 2001, por ocasião da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU em Durban, na África do Sul. Em meio ao debate, os países árabes tentaram desviar o foco da reunião ao comparar, novamente, o sionismo ao racismo. Felizmente, no documento final, os países participantes, incluindo o Brasil, proclamaram que o Holocausto não deve ser nunca esquecido, além de condenarem a persistência e o reaparecimento do neonazismo, do neofascismo e das ideologias violentas baseadas em preconceitos raciais ou nacionais. Declararam, por consenso, que esses fenômenos ‘não se podem justificar em qualquer caso, nem em qualquer circunstância’. Atualmente – analisando as recentes falas do presidente Lula da Silva classificando as ações de Israel como genocídio, comparando-as ao Holocausto [sic] – constatamos que o eixo de argumentação emerge desfocado, destituído de saber e do sentimento de humanidade que privilegia o direito à vida. O Holocausto não deve ser visto como um ‘item ocasional da conduta do Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial’, e sim como uma política meticulosamente planejada pelas lideranças do Estado nacional-socialista alemão e executado por meio de aparatos repressivos do poder, como a polícia e a censura. Calculismo, burocracia, antissemitismo e fanatismo foram ingredientes que garantiram sucesso à fórmula acionada por Adolf Hitler, que, a partir de 1933, encontrou um ambiente de crise propício à proliferação de suas ideias antissemitas. Daí a importância de distinguirmos o que realmente foi o Holocausto, que, pela força de suas singularidades, é hoje considerado como um genocídio sem precedentes na história da humanidade: exatamente por ultrapassar a ideia de ‘tragédia judaica’, por envolver outras minorias em diferentes escalas e, ao mesmo tempo, por trazer para o debate a questão humana, ainda que irrepresentável em sua absoluta excepcionalidade, como querem alguns.”
Não são ilações sem fundamento.
São fatos. E verdadeiros humanistas precisam tê-los em conta.
Finaliza Tucci Carneiro: “Não podemos dar chance à proliferação da mentira que fundamenta a ‘teoria da cegueira’. Antes de empregar de forma irresponsável as palavras Genocídio e Holocausto, todo cidadão deve estar atento às persistências e ambiguidades dos discursos racistas. Tais ‘enganos’ corroem a democracia alimentando visões distorcidas com o propósito de acuar, perseguir, isolar e, até mesmo, exterminar aqueles que não se encaixam no modelo idealizado como ‘normal’. Revisitando o nosso passado e avaliando a atual crise humanitária vivenciada por israelenses e palestinos na Faixa de Gaza durante o conflito Israel versus grupo terrorista Hamas, questiono: a quem serve a cultura da ignorância que privilegia o terror e a mediocridade? Uma coisa é certa: a ignorância mata, sendo hoje uma espécie de ‘vírus’ que abre fissuras para a proliferação de novas cepas racistas das mais distintas linhagens. Enquanto resíduos criptografados no inconsciente coletivo, os arquétipos antissemitas sugerem (e instigam) os seres humanos a endossar ações para a violência e o ódio sem limites. Assim, considero que, atualmente, os mitos sobre os judeus emergem reciclados, simultaneamente e em várias partes do mundo, corroídos por preconceitos seculares que carregam nas suas entranhas o germe da intolerância. Para a escala do ódio basta um passo.”
Eu me decepcionei muito quando o então ministro Silvio Almeida, a quem eu lia e via como futuro presidente do país, não usou todo o seu conhecimento para nos estender a mão.
Enfim, era um registro a ser feito.
Agora, para ilustrar o conceito de “estrutural” aliado ao antissemitismo, recorro novamente ao meu querido amigo Celso Gutfreind, em texto maravilhoso escrito por ele aqui na SLER. Tão maravilhoso, que, na cara dura, usei uma parte enorme (evidentemente que citando a fonte e pondo as devidas aspas) na introdução do meu livro “A cronologia do alef bet”. Volto a usá-lo aqui, porque merece ser lido, relido e trilido:
“Há um antissemitismo ancestral, escancarado. E um quase sutil, estrutural, contemporâneo. Sempre houve a macabra dobradinha. O antissemitismo estrutural já esteve em acusar judeus de banqueiros avarentos, e o escancarado, em matar seis milhões deles. O antissemitismo estrutural já foi fazer piada de judeu pão-duro, e o escancarado, chamá-lo de assassino de Jesus, um judeu, assim como racismo estrutural pode ser fazer piada dos pretos e o escancarado, assassiná-los em abordagens policiais. Hoje as manifestações do antissemitismo vêm sendo outras, mas as duas, de forma ruidosa, andam saindo das tocas, de forma que o antissemitismo estrutural carece de um letramento como este que justamente se tenta propor para o racismo, a misoginia, a homofobia. Para podermos olhar o que está entranhado no fundo de nós e que, plantado há séculos, volta à tona, sem que nos demos conta.
O antissemitismo estrutural vem aparecendo quando uns e outros palpitam sobre a Guerra Israel-Hamas sem perguntar como Israel poderia se defender de um grupo terrorista que perpetrou um ato bárbaro, com ações criminosas que incluíram matar a esmo, estuprar, queimar bebês, mulheres, homens, cachorros, idosos, mantendo ainda reféns vários deles. Todos civis.
O antissemitismo estrutural vem aparecendo quando pensam que não há judeus chocados e tristes pelas ações do atual Governo do Estado de Israel. E que, mesmo em nome da defesa, provoca a fome, o êxodo, a matança de Palestinos. E que esses mesmos judeus propõem uma solução de dois Estados convivendo em Paz no Oriente Médio, sem a interferência de um grupo terrorista que deseja o extermínio de um deles.
O antissemitismo estrutural vem aparecendo quando, ao abordarem essa tragédia humanitária, as pessoas não incluem, na causa dela, os terroristas do Hamas, cúmplices da reação israelense, ao fazerem dos civis escudos humanos, ao lançarem suas bases em escolas e, sobretudo, em hospitais, ao proporem no seu mantra a destruição completa do Estado de Israel, aqui antissemitismo escancarado.
O antissemitismo estrutural vem aparecendo quando judeus são confundidos com um Estado, quando um Estado inteiro é confundido com um só Governo, generalizando o ódio contra um povo como se não houvesse uma pá de Governos radicais ameaçando a democracia, em muitas partes do Planeta, incluindo o Brasil recente.
O antissemitismo estrutural vem aparecendo quando a palavra sionista é utilizada com desconhecimento de sua causa e, novamente, a serviço de (re)encontrar um bode expiatório para os males do mundo (que não são poucos), negando o quanto isso foi feito com os judeus, ao longo da história, como durante o nazismo e o Holocausto, incomparáveis com a matança (inaceitável) de civis, mesmo em nome de uma reação, mas comparável a uma ação terrorista e bárbara de um antissemitismo escancarado.
O antissemitismo revela a face mais odiosa do ser humano, esta que se manifesta através do preconceito a um credo, a uma etnia, a um gênero, a uma orientação sexual, a uma tonalidade de pele, a uma diferença. Ele entra nesta paisagem nem sempre visível, porque pode ser escancarado, mas também sutil, entranhado, mal disfarçado, estrutural.”
Nas reflexões sobre os graves e constrangedores (para seus fãs) erros cometidos, ex-ministro Silvio, leia a historiadora Tucci Carneiro, leia o psiquiatra, psicanalista e poeta Celso e, tendo um tempinho, retribua à leitura atenta e carinhosa que dei à sua linda obra. Leia o meu livro, que procura ser muito elucidativo sobre o que foi dito aí em cima. E saiba: jamais o trairei.
Shabat shalom!
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