O gênio israelense Amos Oz fez certa vez uma frase que provoca desconforto em alguns, reflexão em outros e plena compreensão em muitos dos seus leitores. Ao falar sobre o judaísmo, ele valoriza o aspecto cultural, diz que o que une os judeus é a palavra e, no arremate ousado, define “Deus” como apenas uma dessas palavras. O que ele quer dizer com isso? Como um dos seus leitores apaixonados, minha conclusão foi a de que nessa frase o espetacular escritor não está desidratando a importância de Deus nem dizendo que Ele inexiste. Pelo contrário! Está mostrando que ao ser nomeado ele passa a existir.
Não pensem que isso é um desrespeito. As palavras fazem algo existir. No caso do vocábulo “Deus”, estou certo de que mais do que acreditar ou não, a questão é entender. O Deus judaico é incorpóreo. Sustento tenazmente que ninguém como o racional Baruch Spinoza entendeu isso tão bem. Ponho Spinoza no patamar de um profeta até hoje mal compreendido. Esse Deus sem imagens ou idolatrias é uma abstração, mas existe. Sim, creio nEle e amo a sabedoria da minha religião, minha cultura, minha etnia. Foi de outro sábio judeu, Hillel, que surgiu a frase mais definitiva de todas: não faças ao outro o que não queres que façam pra ti.
Buenas, agora vou homenagear a Rita Lee. Chega de “lero-lero”. Onde quero chegar? Vou a alguns exemplos. Você que tem mais de 40 anos se lembra que aquilo que hoje chamamos de bullying antes era traquinagem e até recebia o sagrado nome de “arte”? Poxa, arte?! O guri sacaneava os coleguinhas, era cruel e provocava sofrimento. A reação era de risos tolerantes seguidos da frase “ah, como ele é arteiro”. Rapaz, que horror. Só com o surgimento da palavra “bullying” entre nós passamos a dar a dimensão da maldade e inclusive do trauma provocado por esse tipo de comportamento hoje, graças a Deus, reprovado e condenado.
Evoluímos? Não só! Muito mais que isso. Hoje estamos certos, antes estávamos errados.
Crueldade não é traquinagem.
Então, só agora, chegou ao ponto que eu queria. Mas creio que o lero-lero ajuda a entender a essência. Quero que reflitamos sobre dois intelectuais negros que nos ajudam a pensar melhor o nosso país, e ambos popularizaram expressões essenciais para sermos civilizados neste país tão paradoxal em sua miscigenação maculada pelo preconceito. Falo da espetacular Djamila Ribeiro, que nos legou o “lugar de fala”, e do ministro Silvio Almeida, que nos legou algo essencial: a compreensão do que ele define como “racismo estrutural”. Fica muito mais fácil, fica palpável, entendermos algo quando temos como traduzi-lo pelo verbo.
A força do racismo estrutural é devastadora (quem me alcançou a obra do Silvio Almeida, anos atrás, foi meu amigão Roger Machado). E só quem tem o lugar de fala dos herdeiros da escravidão pode dar a verdadeira dimensão disso. Eu mesmo hoje me pergunto: se tenho uma fascinação pela beleza das mulheres negras, por que nunca tive uma namorada preta em toda a minha vida? Por preconceito meu? Creio que não é o caso. Pra mim, discriminar pela cor da pele sempre foi uma aberração (como é pela sexualidade, pelo gênero, pela etnia ou por outras identidades determinadas pela natureza). Mas o que faltou, então? Faltou convívio. E por que não convivi com meninas negras? Porque meu ambiente era de classe média alta, e sabemos que a pobreza no Brasil tem cor, como insiste em dizer o Jesse Souza.
Eu não tive a oportunidade de namorar uma menina negra!
Esse assunto me veio à mente quando li texto sobre o papel de Wladimir (foto da capa) na chamada Democracia Corintiana (pra mim, um dos dois maiores movimentos de resistência da História do futebol brasileiro. O outro foi a torcida organizada gremista LGBT Coligay, sobre a qual tive a honra de escrever livro). O texto cresce em importância quando se sabe que seu autor é nada mais nada menos que o biógrafo do Sócrates, aquele que é visto como o grande líder da turma. É impressionante! Leia o que escreveu o Tom Cardoso a respeito:
“É preciso fazer justiça – Sócrates não teria a imagem que tem hoje, do engajado líder da Democracia Corinthiana, se, contratado pelo Corinthians, não passasse a conviver com o único jogador negro do futebol brasileiro filiado ao recém-fundado Partido dos Trabalhadores.
Wladimir, além de militante de esquerda, numa época em que muitos conselheiros do Corinthians mantinham relação estreita com o regime militar (Romeu Tuma, por exemplo), estudava iorubá e frequentava os festivais de cultura do Colégio Equipe, dirigidos por Serginho Groismann.
Wladimir foi quem fez a cabeça de Sócrates, que até então se considerava “apolítico”, o que não evitou que ele desse uma entrevista à revista “Playboy”, em 1979, elogiando o presidente Figueiredo.
Eu sinto um cheirinho de racismo ao ver filmes, séries e livros explorando a relação entre Sócrates e Casagrande, enquanto nada é dito sobre a importância de Wladimir na vida do Doutor.
Sócrates nunca quis participar das reuniões do grêmio estudantil da Faculdade de Medicina, em Ribeirão – preferia beber cerveja com os amigos.
Wladimir mostrou a ele que era possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
E deu no que deu.
Viva Wladimir!
Viva Sócrates!
PS: tem muito Wladimir na minha biografia sobre Sócrates. Quem quiser comprar diretamente com o autor, só dar um alô.”
…
Por que Wladimir não é o herói?
Quantos heróis afrodescendentes deixaram de ser cultuados em razão da cor da pele?
Tenho uma querida amiga cuja trajetória na luta pela legalização do futebol feminino é conhecida dentro do Grêmio, mas nunca recebeu a valorização devida na sociedade. No aniversário do clube em 2022, Marianita Nascimento foi a palestrante de honra. Fez gente chorar na plateia. Mulher, negra, batalhadora contra o racismo e todo tipo de preconceito, a Marianita deveria ter sua história alardeada, conhecida, valorizada, venerada. Já ouvi que, no futebol feminino de décadas atrás, o estilo Barbie era o ideal no imaginário machista e racista da nossa sociedade. Verdade? Difícil dizer, porque sempre é complicado comprovar algo entranhado na cultura. Mas a genialidade de Silvio Almeida, ao esfregar na nossa cara o conceito altamente elucidativo do “racismo estrutural”, nos dá pistas.
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Shabat shalom!