O episódio do jogo de domingo passado entre Grêmio e Flamengo, em que o torcedor do Grêmio grita “tá brabinho?”; o jornal “O Lance!”, sedento de likes, audiências e engajamentos, se apressa em interpretar como “macaquinho”; e o Flamengo, com senso de oportunidade no pior sentido (oportunismo, na verdade), se aproveita da situação para tirar vantagem, me traz uma série de reflexões. Lembrando: o jogador Carlinhos, do Flamengo, foi expulso por agressão ao zagueiro gremista Kannemann e saiu de campo chutando tudo e danificando o VAR (por isso, o “tá brabinho?”). Como são muitas reflexões, vou enumerá-las em deliberados 10 itens (um decálogo), para tornar o texto mais claro, fácil de ler e acessível.
Eu estava com uma ideia de escrever sobre a Argentina, mas não adianta. Um cronista é refém de suas inquietações, das suas obsessões e daquilo que está nas conversas de bar.
Em primeiro lugar, vou repetir pela enésima vez o meu aparentemente contraditório desprezo pela rivalidade no futebol. Por que “contraditório”? Porque é estranho um cara que escreveu oito livros sobre o seu time sentir ojeriza justamente acerca de um assunto que costuma abordar. E por isso o “aparentemente”. São outros elementos que me atraem no futebol, e não essa rivalidadezinha emburrecedora.
Antes de enumerar os tópicos, outra coisa aparentemente contraditória que costumo comentar com os meus amigos: sou um ingênuo, em certo sentido (ser ingênuo propositalmente não é ingenuidade! Durma com essa!) e preservo essa ingenuidade com muito carinho, porque ela me salva da insanidade e dá sentido ao meu trabalho, que se pauta pela sinceridade.
Todos os livros que escrevi causam algum tipo de polêmica. Mas, começando pelo primeiro (“Coligay, Tricolor e de todas as cores”), eu simplesmente queria contar uma história linda e edificante que ocorreu no meu time e imaginei que a leitura seria ampla, de azuis, vermelhos, roxos e até dos muito antes pelo contrário. SQN! São raras as pessoas de outras colorações que se dignam a ler, deixando-me muito feliz quando isso ocorre. E assim continuei, porque acredito que a “ingenuidade”, o papo reto e a verdade como meta são a salvação da humanidade.
Mas, enfim, vamos às lições:
1) Duas delas já estão no primeiro parágrafo deste texto: a avidez de um veículo jornalístico ao criar engajamentos e a falta de ética de um clube ao se aproveitar da situação. É feio, é sério e traduz vários aspectos dos tempos loucos em que vivemos. Aliás, a minha primeira reação ao ver a matéria do “Lance!” foi bater com a palma na testa, dizer “só faltava!”, mas… depois, comecei a pensar que seria demasiadamente fofo o diminutivo do “macaquinho” num suposto xingamento, fui ouvir melhor e…
2) O racismo como trunfo. Vocês já repararam que a questão dramaticamente séria do racismo é usada no futebol para mostrar uma infantilóide superioridade moral sobre o rival, quando sabemos que a sociedade brasileira em geral é desgraçadamente racista e a gaúcha em particular é ainda pior, não havendo camiseta de time que escape dessa danação por vezes estrutural e por outras explícita? Com a gloriosa exceção do Vasco, todos os nossos clubes grandes têm origem completamente branca, e a esmagadora maioria, de elite (e creio que todos, em igual medida, têm na origem também a índole popular). Aquele se abriu mais antes por algum motivo, este ficou um tempo mais fechado, mas tudo muito parecido.
3) Diante de tamanha leviandade (para dizer o mínimo, porque calúnia é crime), o Grêmio fez uma nota e depois soltou o departamento jurídico a gritar grosso. Acertou nas duas reações. Na nota, era a instituição, que precisa sublinhar a infinita prioridade de tratar o racismo com a necessária seriedade e com a objetividade de quem quer acima de tudo combatê-lo (e como são belas as iniciativas do clube nessa área!), colocando-se sempre à disposição para o combate a esse absurdo. Na reação do jurídico, era a parte do confronto civilizado, mas enérgico na contenda dos tribunais, onde o enfrentamento deve se dar. E não estranhei esse discernimento. O presidente Alberto Guerra, o presidente do Conselho Deliberativo, Alexandre Bugin, e o responsável pelo Departamento Clube de Todos, Juliano Ferrer, são queridos amigos a quem admiro também pelo caráter e pela visão generosa e solidária de vida que eu conheço muito bem.
4 ) A triste lógica da polarização também aqui presente. Por mais que o Flamengo tenha visto alguns dos seus próprios torcedores nas redes antissociais manifestando vergonha pela distorção evidente, o clube gritou um “piça!” e foi lá tirar proveito da situação. Não adianta se a nítida verdade (ouvi o áudio até em caixa de som e com fones de ouvido pra me certificar) está do outro lado. Bandeiras, mesmo que escrotas, estão aí para serem empunhadas. E foda-se a independência intelectual.
5) Colorados, mesmo vendo o absurdo, ou silenciaram, ou salivaram pela oportunidade de pôr um pouquinho mais de cola na etiqueta grudada no rival, o único clube brasileiro, em meio a centenas de casos, que foi eliminado de uma competição porque uma imbecil gritou horrores contra o goleiro adversário.
6) Eu estava no jogo. Ouvi os gritos homofóbicos da torcida do Flamengo. Mas… melhor escrevermos depois uma coluna inteira sobre escandalizações seletivas, preconceitos e agressões.
7) O “suposto caso de racismo” do torcedor que mostrou a cara imediatamente (provoca aflição o desespero do sujeito diante da desfaçatez) por saber o que disse e sobretudo o que não disse deveria ser revirado ao avesso. O caso a ser investigado é o de fake news do jornal, conivência do time e calúnia de ambos.
8) Falemos de leviandade, irresponsabilidade e falta de empatia até por parte de quem tenta falsamente se apropriar da virtude. É um problemão! Vejo isso a todo instante, nas redes antissociais, na selva automotiva, no telemarketing absurdo, na política partidária decadente e em outras merdas da época em que nos tocou viver. Sejam de esquerda ou direita, é impressionante como todos dizem “fodam-se os escrúpulos!” Vocês não percebem que falsa acusação, crime contra a honra e um “dane-se” podem afetar uma ou milhões de pessoas?
9) Nem vou entrar no mérito do time de futebol que virou a Geni do futebol brasileiro, a ponto de praticamente não ter podido jogar na sua casa em um campeonato desgastante de pontos corridos, de ida e volta e com rebaixamento, e o motivo dessa desvantagem competitiva ser o fato de ter sido atingido em cheio pela maior tragédia ambiental já ocorrida no país (!). Também não vou falar nos frequentes e escandalosamente claros erros de arbitragem que atingem mais uns que outros.
10) Concluo o decálogo com um questionamento: o futebol, como dizem os argentinos, é um desfrute? Ou é um motivo a mais de azedume e sentimento de impotência num mundo cruel, onde o egoísmo se tornou encorajado modo de vida?
Prefiro nem responder, pra não estragar o teu dia.
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O texto acima trata de futebol e foi escrito terça-feira. O assunto de que ele se ocupa é atemporal. Mas houve, no dia seguinte, um resultado preocupante do meu Grêmio contra o Criciúma. Dói ver um time com jogadores de qualidade compondo um conjunto desfuncional. Os problemas são visivelmente táticos, de organização. Oxalá o resultado decepcionante sirva para que apertem os parafusos devidos e façam a engrenagem andar, porque seria muito cruel um rebaixamento no ano em que sofremos com a enchente e, em especial na região desassistida da Arena, o futebol também foi engolfado pelas águas.
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Shabat shalom!
Foto da Capa: Reprodução das Redes Sociais
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