Aquela história de “é só política” pra amenizar os ânimos numa situação em que pessoas lúcidas se exasperam diante do fascismo à sua frente não cola. É uma forma de banalizar o horror. A contaminação de porções importantes da sociedade pela estupidez, além de aspectos que nos remetem à distopia das ficções científicas, nos traz fatos que podem ser observados no nosso cotidiano. E não me refiro a invasões de prédios dos Três Poderes, tentativas de golpe, deteriorações de obras de arte e outras aberrações do tipo.
Tem uma situação relatada pelo ótimo historiador argentino Eduardo Lazzari que é aterradora e faz pensar. Entre vários assuntos que domina, Lazzari conhece em detalhes o cemitério da Recoleta, onde inclusive coordena tours aos domingos. A cena é a seguinte: numa visita guiada, ele comenta que o corpo embalsamado de Evita Perón, depois de andar pelo mundo em razão do temor fascista de vê-lo venerado pelos descamisados, estava enfim descansando na residência oficial de Olivos em 1976, quando houve o trágico golpe militar no dia 24 de março, e aquele neandertal carola e assassino chamado Rafael Videla avisou que não dormiria nem uma noite ali caso o perigoso corpo da mãe dos pobres se mantivesse no seu eloquente silêncio sepulcral. Foi aí, então, que o corpo de Evita teve sua última (espero…) viagem, passando a jazer na Recoleta, onde ainda está. Pois bem. Ao saber do novo destino de Eva, cinco famílias da elite portenha retiraram seus mortos do local, exumando-os e os levando para outras paragens. Lazzari recentemente contou essa história aos risos em uma visita ao cemitério, esperando o choque das pessoas que o ouviam. Mas aí veio aquela senhora, com o cenho franzido e o dedo em riste. “Pois saiba que essas famílias tinham toda a razão.” O historiador, evidentemente, ficou com olhos arregalados e a boca aberta, paralisado.
Um troço desses surpreende até os especialistas.
É evidente que, se essa senhora argentina fosse brasileira, estaria apoiando o inadmissível. Talvez até estivesse pastando na grama do Planalto, pedindo pelo Messias.
Triste demais! Parece aqueles pesadelos dos quais não conseguimos acordar.
E por que esse tipo de figura existe? Porque uma estupidez se espalhou entre nós. A ideologia ultraliberal, com sua visão egoísta, além de nos ter roubado a camiseta da seleção brasileira, apropriou-se da expressão “liberdades individuais”. E é a nesse falso conceito que os patriotas se amparam. Preciso fazer a ressalva de que respeito os defensores do liberalismo econômico que realmente defendem a liberdade de empreender cientes de que isso vai beneficiar o todo da sociedade, produzir riqueza e se espalhar para a sociedade. Discordo que funcione assim, mas respeito. Só que esse liberalismo econômico muitas vezes flerta com o egoísmo, e, como me diz o querido amigo e professor de filosofia Dael Prestes Rodrigues, “o fascismo é a face violenta do liberalismo econômico”. Acho genial essa frase do Dael, e ele sabe disso.
Por que o nazismo é de extrema direita, ao contrário das distorções que tentam impor alguns alucinados (ignorantes ou desonestos)? Porque a ideia da supremacia racial é exatamente isso. A superioridade dos “fortes” sobre os “fracos” produz desigualdade e miséria, provoca a eliminação dos frágeis, assegura a supremacia dos vermes que não suportam a ideia de dividir a sala de embarque do aeroporto com pobres e se sentar na faculdade ao lado de negros.
É literal! O nazismo é a direita levada ao extremo. Ou seja, extrema direita.
Desenho, ou tá bom assim?
Não por acaso, meses atrás li o pior texto com o qual já deparei na minha vida. Juro que o cara tinha a coragem de defender a desigualdade social como algo positivo, algo verdadeiramente “humano”, porque a desigualdade, segundo ele, é da essência humana. Haja contorcionismo! “Humano”, como diz o mestre Mujica, é ser solidário (isso é civilização, conforme o velho sábio). E o mais incrível é que o título do tal texto, o pior texto que lá li na minha vida, repito, dizia com todas as letras que a desigualdade é a “solução final”. Não tenho vontade de consultar ao autor se esse título foi proposital ou é aquilo que Freud chama de ato-falho.
Buenas, aqui faço uma ressalva: dificilmente eu defino algo como “o melhor” ou o “pior”, com as exceções dos Beatles e do Pelé, além do Messi se a comparação for contemporânea.
Mas o texto esse foi, sem qualquer lugar a dúvida, o pior que já li na vida.
O autor? Guru neoliberal.
Alguém que, em razão de alguns contextos que conheço, jamais poderia ter escrito algo assim. Juro que tive de reler o texto e em especial o título pra acreditar naquilo.
Mas vamos ao exercício a que me proponho. Vou citar alguns episódios do cotidiano que mostram como esse egoísmo está autorizado por uma ideologia nefasta em voga.
Alguns exemplos:
_ Nunca, na minha vida, buzinei tanto para avisar que estou passando numa esquina em que tenho a preferencial. As “liberdades individuais”, a forma bonita de dizer “o meu pirão primeiro”, colocaram em desuso a regra universal da preferencial.
_ Passeando com meu cãozinho, nunca tive de reprimi-lo tanto pra evitar que ele cheire e engula as porcarias que as pessoas jogam na via pública. Porque, claro, pra essas pessoas, o ambiente público, em vez de ser de todos, é terra de ninguém.
_ Também passeando com meu cãozinho: algumas vezes preciso pegá-lo no colo, porque neandertais andam com seus pitbulls sem coleira, exercendo, claro, seu sagrado direito individual de deixar a fera livre pra curtir a vida adoidada.
_ Numa sala de espera do hospital, a pessoa vê telenovela no computador a todo o volume, exercendo seu direito individual de não se preocupar com os chatos como eu, que podem estar querendo se concentrar em alguma leitura, por exemplo.
_ Experimente ir pra praia. Uau! É uma coleção de “liberdades individuais” incrível. Começa no pedágio da freeway. Você já reparou que ao chegar à cancela, alguns aceleram pra ficar na frente dos outros? Fila? Ora, isso existe se estou na minha lata de metal?
_ Falo de vacina, ou é muito manjado? Falo, porque é basilar. O cara que não se vacina ou não usa máscara contra a Covid porque sente que tem corpo de atleta, sem em nenhum momento atentar pro fato de que pode contaminar as outras pessoas.
_ A lista é longa. Vou me deter aqui no cabalístico 7, citando, claro, a liberdade individual de invadir os Três poderes, furar obra de arte, mostrar a bunda acintosamente, mentir, sacanear, distorcer, tudo em nome das suas intocáveis liberdades individuais.
…
Recentemente, Alexandre o Grande, também conhecido como Xandão ou Alexandre de Moraes (foto da capa), cortou o barato de pessoas que mentiam e distorciam escancaradamente (e comprovadamente) nas eleições presidenciais. Como na Justiça temos a “fumaça de bom direito” e o “perigo de demora” previstos pra tomada de decisões urgentes diante do risco de dano irreparável, “Xandão” simplesmente cumpriu seu dever. Se não o fizesse, há outra questão jurídica aí. Ele estaria prevaricando. Procure no Google se não sabe o que isso significa. Presidente do TSE e ministro do STF, “Xandão” precisa ser lembrado como o herói histórico que poupou o país de quatro anos conquistados injustamente por uma turba desqualificada, má e ignorante que trataria de tornar o STF terrivelmente obscurantista, perseguiria a imprensa, detonaria de vez a cultura e acabaria com o país.
Ele até tentou evitar o cerceamento de pessoas que não puderam votar em razão dos bloqueios no Nordeste, mas ainda assim o bem triunfou. Mesmo com essa limitação de liberdades (agora sim), a vitória do bom senso imperou, e o país foi salvo.
Viva o Xandão! Um herói a ser reconhecido!
Curiosamente indicado pelo Michel Temer, que é constitucionalista e fez uma sugestão técnica, o cara entrou pra história em razão das suas impressionantes retidão e perseverança. Baita juiz! Cresceu como ser humano e, sim, até se hipertrofiou como representando do Judiciário, porque isso infelizmente se fez essencial. Os falsos defensores das “liberdades individuais” o criticam por ter violentado o direito de expressão. E falam isso sem corar. Afinal, são capazes de defender a desigualdade como “solução final”.
Figuras como Evita (assim como o Xandão), neste mundo em que até a liberdade é distorcida em nome do egoísmo e da estupidez, não tem o direito nem de descansar os ossos.
Não tá fácil, pessoal! Mas sigamos em frente.
E façamos Justiça a quem merece.
…
Shabat shalom!
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