Não estamos vivendo uma eleição normal. Faz alguns anos que se trata do embate entre civilização e sensibilidade contra barbarismo e grosseria. Quando se falavam absurdos como terraplanismo ou “nazismo é de esquerda”, eu pensava: buenas, a Terra é redonda, tem até imagem; e o nazismo preconizava o supremacismo racial como atalho, a forma extrema de desigualidade em que o egoísmo permite a concentração de renda e a miséria dos fracos e inferiores. Literalmente, “extrema-direita”. Percebem? É quase como uma fotografia da Terra! Isso sem falar que todas as formas “artificiais” de evitar esse supremacismo “natural” eram criações judaicas como a democracia, o crédito, Hollywood e o bolchevismo malvadão (“bolchevismo judaico”). Enfim, comunistas eram perseguidos pelo nazismo, e judeus tinham que pagar pelo péssimo hábito de valorizar a cultura e a educação como pilares da sua etnicidade. Oh, racinha essa que só atrapalha! Não é mole, meu amigo! Vivemos tempos em que se faz necessário repetir até o óbvio do óbvio do óbvio.
Mas quero falar aqui sobre ideologia. A ideologia está no cotidiano como nunca esteve. Outro dia, eu estava em meio à selva de metal do trânsito automotor, e uma figura, curiosamente com certo adesivo no seu caminhonetão espaçoso, me fechou a frente. Eu abri os braços e reclamei: “Pô, como é que tu me faz isso?!” O cara respondeu: “Bah, velho, eu não te vi!” E eu, pasmo, falei algo que só depois elaborei, percebendo o quão profunda foi a frase: “Esse é o problema! Tu não me viu!”
Sim! Essa é a essência de todos os problemas. Olhar o outro seria uma conquista nestes tempos de trevas. Falando em trevas… no aeroporto, diante da proibição de sequer parar no espaço supostamente público, sou obrigado a estacionar na garagem que me escorcha só pra eu acompanhar o desembarque ou o embarque dum filho; vêm malandros cercando o incauto e tratando de lhe criar alguma nova, custosa e desnecessária necessidade, num golpe legitimado como tantas outras aberrações naturalizadas; vem a companhia aérea criando empecilhos que te levam a pagar tarifas inesperadas (“são as regras, o sr ñ leu?!”) e 80% de outra passagem no próximo voo; diante da necessidade de esperar o novo voo, horas depois, vem a lanchonete cobrando sanduíche a preço de buffet e não avisando que o pão está cheio de nozes salpicadas, pouco importa que haja pessoas alérgicas a elas. É o inferno sofisticado, num nível acima da selva do mundo virtual e do trânsito automotor, a resumir nosso distópico mundo cão.
E fico a pensar: quem protege minha liberdade das “liberdades individuais” (que expressão castigada e desvirtuada essa!) de me ferrarem?!
Ufa, tem a Justiça! Tem o STF!
Taí uma boa, didática e altamente elucidativa situação para entendermos por que aqueles comunas do STF provocam tanta indignação! A Justiça é o derradeiro bastião a defender nossa dignidade diante das entranhadas, alardeadas e até santificadas “liberdades individuais”.
Longa vida ao STF!
E viva a vacina!
E viva a terra redonda que dá voltas!
E viva a arte, a compaixão e a vida!
E viva a democracia!
E viva a urna hermética e indevassável!
E viva a verdadeira liberdade, a de viver em paz.
E de se ver livre disso tudo!
Outra historinha verídica
Eu subia a íngreme Lucas de Oliveira, tinha pressa. Na minha frente, o Mercedes preto novinho ia beeeem devagar, como se estivesse sozinho no mundo. E o sinal fechou. Tudo no ritmo do motora, que parecia de cueca esparramado no sofá da sua sala exclusiva. Fiquei então olhando o homem de cabelos brancos, bem apessoado, engravatado, terminar de abrir o pacote de balas, baixar o vidro e, reclinado no banco, quase que dormindo, jogar o papel inorgânico do caramelo no chão da rua, aquele lugar que, por ser de todos, não é de ninguém. Tão bonita a cena! Ainda pude ver o homem saborear o caramelo de olhos fechados enquanto o vidro subia lentamente. O sinal abriu. Dei uma breve buzinada pro sujeito perceber que tinha gente querendo andar. Apesar de alheio ao entorno, talvez ele tenha se dado conta, porque, vagarosamente, permitiu o fluxo dessa gente chata, cheia de compromissos com filhos e outras tolices cotidianas, gentalha mimizenta que só atrapalha.
No rádio, o maluco do Gil cantava sobre a realidade que virou “aleijão”, de “gente estúpida”, “gente hipócrita”. Ah, esses baianos, vai entender o que dizem!
Só fiquei pensando, enternecido, naquele homem de bem exercendo seu sacrossanto direito às alardeadas (e distorcidas) “liberdades individuais”.
Da lactose
Quando eu era guri
Vivi falso dilema
Que enfim resolvi
Tinha o Alceu Collares
Contra o Marchezan
Eram as opções pra tu votares
Cogitei anular
Mas claro que seria
Meu voto desperdiçar
No turno inicial
Votei no Tarso
Que ainda ia mal
Anos depois foi eleito
Chegou a governador
E antes foi prefeito
Mas nos anos oitenta
Estávamos vindo
De uma ditadura violenta
Confesso que eu era sectário
E demorei pra enxergar
O verdadeiro cenário
Na lucidez dei meu mergulho
E do meu voto no Collares
Tenho enorme orgulho
Hoje dou muito valor
A esse grande homem
Que se fez governador
Se tivesse votado em branco
Meu Deus!
Pro fascismo eu daria o flanco
Haverá algo semelhante
Nas eleições
Que teremos logo adiante
Mas agora duvidar seria dose
Em segundo turno contra o fascismo
Não temerei o excesso de lactose
…
Vamos ao grão:
O cenário não me traz certeza
Haverá métodos da República Velha
Pra revogarem a Revolução Francesa
É natural falarmos em anacronismo
Quando lidamos
Com filhos diletos do fascismo
A questão é apenas uma
Os petistas apoiarem o Leite
E, claro, o Leite apoiar o Lula
…
Insights de saideira
Nestes tempos de volta à República Velha (quando o governo de plantão tenta evitar que a população pobre tenha condução pra ir votar, trata-se de estratégia típica do Brasil pré-1930), pensei num trocadilho e na seção do Carlos Nobre em Zero Hora que falava no “Pensamento do Dias” (o Nobre era genial!): se misturarmos os votos do LEITE com os do PRETTO no segundo turno, será de certa forma a volta da “política café com leite”, só que fora de SP e MG e, ao contrário da anterior, pra nos salvar do atraso.
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Já tivemos Ciro, o Grande
Hoje temos Ciro, o Pequeno
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Shabat shalom