Sempre que tenho a oportunidade de falar a alunos de Jornalismo na universidade, faço a alegria da gurizada: sou um defensor ferrenho e otimista da profissão. Por quê? Ora, porque simplesmente não vejo alternativa ao mundo civilizado que não seja sob o alicerce da informação, e quando falo em informação necessariamente falo em algo verdadeiro. Se for falso, é rumor, fofoca, seja lá qual nome você quiser. “Fake news” me parece uma contradição uma contradição, porque, se é “fake”, não é “News”. Mas, enfim, preciosismos à parte, vejo hoje o momento de maior relevância do Jornalismo. E você me perguntará: logo agora, que ele vive essa crise em meio às leviandades da internet? E eu respondo: sim, precisamente por isso.
Como será o Jornalismo de amanhã? Essa pra mim, é a pergunta mais difícil. Só sei que os veículos, tristemente, em vez de tomar a lógica perversa das redes sociais como inimiga, a toma como amiga. A quantidade de seguidores se tornou o currículo; a agressividade e por vezes a desonestidade se tornaram o conteúdo desejado. Motivo: clics. Audiência.
A urgência deste mundo competitivo e egoísta leva as empresas à necessidade de se render a um coquetel venenoso de ganância misturada à avidez. O conteúdo de qualidade fica em segundo plano diante da necessidade de apresentar resultados. Aquele professor de Filosofia brilhante que entendia muito de futebol hoje certamente seria rejeitado. O lance é apostar no malandro ou no desqualificado que usa a linguagem do torcedor de futebol médio: um idiota.
Em meio a todo esse contexto confuso e desafiador, às vezes deparamos com alguns diamantes do Jornalismo. E a que se devem a solidez e o brilho desses diamantes? À qualidade e à profundidade das reportagens, das crônicas ou dos artigos. Mas do que informar (o que sempre foi bastante), hoje se deve combater a desinformação. A reportagem ética e com a devida checagem, feita com técnica por profissionais bem formados, é eterna. Ela alimenta a História. Também a entrevista bem-feita e interessante cumpre o papel de iluminar caminhos.
Na semana passada, a ótima colega Larissa Rosso, sob a edição dos igualmente ótimos colegas Daniel Feix e Ticiano Osório, fez uma entrevista que acalentam a alma de um jornalista como eu, que busca lucidez em meio às trevas. A entrevistada foi a professora trans Alê Teixeira Primo, e o conteúdo que se lia naquelas três páginas remetia o leitor a um natural exercício de empatia. O depoimento de Alê pôs o leitor nos sapatos de uma pessoa transexual.
Diante dessa maravilha de entrevista, que é um enorme serviço à sociedade, fiquei muito tempo refletindo sobre a relevância de um bom depoimento. E me lembrei de algumas que fiz e que marcaram a minha vida. Tratei, então, de elencar 21 desses trabalhos. Uso o número 21 porque é o século em que estamos e que tem sido tão estonteante em sua liquidez, em suas incertezas, o século da Era de Aquário, em que a evolução convive com a reação reacionária.
21 entrevistas para o século 21 (sim, o título é do Yuval Harari).
Pepe Mujica
Durante uma hora, na chácara onde ele ainda vive, tive a oportunidade de ouvir um dos homens mais sábios da nossa geração. Ele era ainda o presidente uruguaio, e a entrevista foi costurada durante longos meses, até que sua assessoria me chamou, e eu fui. Mujica falou sobre toda a inquietação solidária e humanista que o levou a buscar no extremo da luta armada a solução, algo que hoje rejeita, na sua visão empática de olhar o outro. Também falou sobre a liberação da maconha, sustentando que a medida tirava o monopólio dos traficantes e assegurava um produto sem aditivos viciantes e prejudiciais à saúde. Foi pela Zero Hora.
Justiça restaurativa
Uma entrevista com o jurista canadense Aaron Lyons foi um momento de lucidez. A justiça restaurativa é, nada mais nada menos, que o papo reto, o olho no olho. Nestes tempos de relações virtuais, superficialidades e mentiras, parece ser toda uma solução. “O que vale é o contato entre as pessoas”, me disse Lyon, que é judeu e já trabalhou com israelenses e palestinos. Veja bem! Foi por Zero Hora. Saí do encontro maravilhado.
Pelé
Na volta da Expointer, falei com Pelé. Uma hora no carro, vindo de Esteio. Eu e o Rei.
Lula
Algumas entrevistas com o Lula, umas coletivas e umas duas ou três exclusivas. Mas me lembro especialmente de uma que não ocorreu. Numa caravana de campanha presidencial, eu (pela Folha de S. Paulo) e um colega do Globo nos encontramos cedo para o café da manhã no restaurante do hotel em Erechim. Para nossa surpresa, só mais uma pessoa estava ali: Lula. Baita sorte! Mas, por questões éticas e de camaradagem com os colegas de outros veículos, resolvemos deixar nossas perguntas para a entrevista coletiva. Imagina dar um furo de reportagem assim. Nos sentimos meio que dando uma rasteira, e isso não seria justo. Ou seja, entre pães, frutas e queijos, falamos animadamente sobre Grêmio e Corinthians.
Chilenos sob a terra
Lembram dos mineiros chilenos soterrados? Eu estava em Zero Hora e tive uma ideia. Mandei quatro perguntas para a mulher de um deles, e ela desceu um bilhetinho no balde que usavam por um túnel com as minhas perguntas. Entrevista fraca, com respostas que em nada acrescentavam. Mas a sacada de fazê-la e o fato de ter as palavras dos caras já valeu.
Filho de desaparecidos
Entrevistei o primeiro filho de desaparecidos na ditadura argentina a ser resgatado. Quando o cara começou a falar revoltado sobre a raiva que lhe dava ter crescido sem a presença dos pais, eu realmente tive que conter minhas próprias lágrimas. Eu era correspondente da Folha em Buenos Aires. A entrevista no outro dia foi pauta da imprensa local.
Michelle Bachelet
Duas vezes. Para falar sobre a mulher na política. Ambas por Zero Hora.
Mauro Galvão
Eu era fã de um jogador do rival. Mauro Galvão me parecia um mágico. Magro e com menos de 1m80, tinha tanto senso de colocação que parecia ocupar vários espaços ao mesmo tempo. Era tão refinado tecnicamente, que até seus carrinhos tinham arte. Galvão jogava no Lugano (Suíça), e eu lhe telefonei emocionado, porque me sopravam que ele estava vindo para o Grêmio. Uau! Ele confirmou! Fiz a reportagem exclusiva e fui beber pra comemorar.
Aldo Rico
Esse sujeito foi um defensor do fascismo na Argentina. A entrevista teve algumas declarações surpreendentes, que pautaram a imprensa argentina (eu era correspondente da Folha em Buenos Aires). Mas o que me marcou foi que ele me perguntou a origem do “Gerchmann”, e eu respondi que sou judeu. O sujeito fechou a cara e encerrou a entrevista. Sem mais.
Gerson
Entrevista que tentei fazer e não consegui, por Zero Hora. Gerson, atacante do Inter, pegou Aids quando o HIV era condenação certa à morte, no início dos anos 1990. Nenhuma entrevista formal foi feita, mas muitas conversas no pátio do Beira-Rio. Gerson me assegurava que estava curado porque havia se convertido a uma igreja neopentecostal, e se operara o milagre. Evidentemente, o destino dele foi cruel, profissional e pessoalmente, e eu tive uma lição impressionante de a que ponto o obscurantismo pode atingir nossas vidas.
Stones
Entrevista coletiva no Sheraton, quando eu era correspondente da Folha em Buenos Aires, e a banda tocou no Monumental de Nuñez. Sim, eu fiz uma pergunta pro Mick Jagger e pro Keith RIchards.
Integrante da Coligay
No meu livro “Coligay, Tricolor e de todas as cores”, tem uma entrevista picante com um dos ex-integrantes, que preferiu manter o anonimato. Os detalhes da relação do entrevistado com um advogado no Passat creme pelas cercanias da Avenida Farrapos, ouvindo Elton John, deram uma ambientação viva ao meu livro. Se ele tivesse assumido quem era talvez não tivesse me contado tantos pormenores. Melhor deixar assim. O livro agradece.
Clinton
Eu recém tinha chegado a Buenos Aires para ser correspondente da Folha, e o jornal pediu que antecipasse em alguns dias meu trabalho por lá, porque o presidente americano Bill Clinton resolveu ir pra Bariloche na sua viagem pela Argentina, e o maior jornal do país estaria descoberto. Foi uma correria. Mas consegui a passagem e a reserva do hotel, e lá estava eu, em frente às cordilheiras, falando com o então homem mais poderoso do mundo.
Esteban Bronstein, neto do Trotsky
Entrevistei o neto do Trotsky, que vivia no México (morreu agora em 2023). O senhor Esteban foi como um filho para o revolucionário russo, porque era órfão. Quando Ramón Mercader (o enviado do Stlálin para eliminar o rival) o matou, Esteban era uma criança e, ao chegar da escola, viu o corpo do avô com a machadada mortal na cabeça. Me contou tudo isso.
Oviedo
Lembram do Lino Oviedo, o general paraguaio que tinha o hobby de dar golpes? Eu tinha o celular do cara e o entrevistava. Uma vez, o entrevistei, para a Folha, em meio à ação.
Sergio Widder
Representante do Centro Simon Wiesenthal (de perseguição a nazistas), o argentino Sergio estava no Fórum Social Mundial e me deu uma entrevista em que estava chocado com os discursos anti-Israel que ouvia. A Folha deu uma página inteira ao seu desconforto (confesso que o meu também) com os absurdos antissemitas proferidos por supostos humanistas.
Brizola sobre Neusa
Fui a São Borja quando morreu Dona Neusa Brizola. E Brizola me disse que, com tudo o que viveu, de exílios e decepções, nada o abatera tanto. Fiz outras entrevistas com o líder social-democrata, algumas delas marcantes. Mas essa foi emocionante de uma forma especial.
Ronaldo Fenômeno
Entrevistei Ronaldo Fenômeno no centro do Mineirão quando ele era uma promessa muito badalada do Cruzeiro. Anos depois, eu estava na França, cobrindo a Copa do Mundo pela Folha, quando ele teve aquele famoso piripaque às vésperas da decisão.
Alcindo
Ah, Alcindo, craque tricolor. O “Bugre Xucro”. Eu o entrevistei para o livro “Somos azuis, pretos e brancos” e fiquei ainda mais orgulhoso de ser gremista. Que cara incrível!
Mães em escola
Fui à fronteira cobrir o incêndio de uma creche. Tive que entrevistar pais e mães que recém haviam perdido os filhinhos. Foi, disparado, a minha reportagem mais difícil de fazer.
Professora em Rivera
Esta história é especial! Fui à fronteira com o Uruguai fazer uma reportagem de crianças brasileiras que, sem escola por perto no Brasil, tinham de ultrapassar a divisa para se educar no país vizinho. Resultado: mesmo brasileiros, aprendiam História do Uruguai e o idioma espanhol. Além de mostrar a importância de ter uma escola que ensine a história e o idioma do seu próprio país, a entrevista que fiz com uma professora uruguaia foi surpreendente. Lá pelas tantas, ela me disse que tinha parentes em Porto Alegre. Ok, eu pensei. Grande coisa! Seria como agulha no palheiro. Mas, para minha surpresa, ela era prima de uma grande amiga.
Conclusões de todas essas entrevistas: o mundo é pequeno, o contato com as pessoas é insubstituível e o jornalismo é essencial. Ah, e é muito importante se informar, porque só a informação esclarece e remove a ignorância que alimenta o preconceito.
Shabat shalom