Desta vez, a narrativa antissemita mainstream, eficiente a ponto de supostos humanistas e intelectuais defenderem cegamente o obscurantismo violento e expressamente genocida do Hamas, superou até uma antiga e triste conclusão: a de que o mundo costuma amar os judeus, mas apenas os judeus mortos.
Agora, nem isso está ocorrendo.
Na terça-feira, fez um mês o pogrom avassalador de que Israel foi vítima, com o assassinado de 1.400 pessoas numa ação cruel que teve estupros, degolas de bebês, grávida com a barriga rasgada e feto arrancado e outras barbaridades gravadas pelos próprios terroristas (ou seja, é impossível questionar a veracidade das imagens, mas ainda assim questionam, claro!), que as exibiram em vídeo para esfregar na cara dos familiares das vítimas ou para seus próprios familiares dizendo “oba, matei um judeu”. Mas, para o mundo em geral, é como se nada.
Na segunda-feira à tarde, havia uma multidão perto do knesset (o parlamento israelense) reunida para lembrar ao mundo: ei, pessoal, nossos familiares e amigos foram executados cruelmente e muitos estão sequestrados. Olhem pra nós!
Não foi só lá. Aqui na Praça Independência, em Montevidéu, cartazes com rostos de vítimas foram expostos sob os pés da estátua de Artigas. É um apelo: pessoal, ao contrário do que vocês dão a entender, não somos um país de tanques e soldados.
A invisibilidade é um dos principais pilares do preconceito.
No caso do antissemitismo, o ódio ao judeu se consolida como algo “positivo” para o senso comum. É chique odiar Israel, é “pra frentex” xingar os judeus. E mesmo alguns amigos que até te entendem se afastam, silenciam, porque o judeu contagia, porque pega mal estar ao lado da vítima de genocídio acusada de ser justamente a autora do que fizeram a ela. O judeu é uma companhia que desumaniza, aos olhos tolos de pessoas que fazem da defesa dos direitos humanos algo superficial, pueril.
Cadê meus companheiros de luta pelos direitos das minorias?! Eu continuarei estendendo-lhes a mão e defendendo as pautas que considero justas, porque essa é a minha índole, porque nunca defendi algo por modismo. Sempre foi por convicção.
Mas cadê vocês?!
(sim, sou eu perguntando)
Por favor, precisamos de ajuda!
(sim, sou eu pedindo)
Precisamos de solidariedade.
(de novo)
Não basta ser “humanista” para apoiar os judeus. O cara precisa ter personalidade, índole justa e independência intelectual.
Creio que assim eram os famosos “justos entre as nações”.
Não era fácil ajudar os judeus em meio à Segunda Guerra quando os países dos caras os demonizavam.
E assim é agora! Quero ver os “justos entre as nações” de hoje.
Toc! Toc! Cadê vocês?!
Tchê, os humanistas de palanque desfraldam a bandeira do Hamas, um grupo que não precisa ser denominado de terrorista, assim como geladeira não precisa ser chamada de geladeira, fogão não precisa ser chamado de fogão, carro não precisa ser chamado de carro. É terrorista, e seus próprios atos o definem.
É inacreditável que tenha defensores!
Faço aqui um agradecimento comovente ao publisher da Sler. O Luiz Fernando Moraes, meu amigo de muitos anos, entende e endossa que eu tenha feito deste meu espaço não simplesmente um “lugar de fala”, mas uma plataforma de grito angustiado.
Obrigado, querido Luiz Fernando!
Aqui vão os links do que tenho escrito. Peço muito que leiam, porque não posso repetir tanto conteúdo o tempo todo:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
…
A maior de todas as ironias é que o Hamas quer fazer um califado, e você sabe o que é um califado, né? A Luciana Genro e a Fernanda Melchiona não conseguirão visitar seus companheiros no dia em que eles atingirem suas metas.
(desta vez, pus os nomes, e não as alcunhas de costume)
Ou os visitarão, mas devidamente enquadradas pela sharia.
Em nome dos companheiros de luta, talvez elas cedam!
Já de nada duvido.
Quem defende o Hamas, justifica seus propósitos genocidas (aí sim cabe a palavra) e fala de “Palestina do rio ao mar” é antissemita (e eu tenho lugar de fala pra definir isso! Não queiram me negar também o lugar de fala). Essa pessoa é perfeitamente equiparável a um nazista, porque tem o mesmíssimo objetivo de aniquilar os judeus e seu lar.
O genial Amos Oz conta a história de seu pai, que nasceu na Lituânia e migrou pra antiga Judeia (chamada posteriormente de Palestina, mas eu prefiro dizer JUDEIA, pra deixar tudo muito claro) no início do século passado. Quando era jovem e vivia em Vilna (capital lituana) enfrentando os pogroms, ele lia nas paredes a pichação “judeus, vão embora pra Palestina (o nome dado pelo império romano à Judeia)”; quando foi visitar a terra natal, já nos anos 1970 ou 1980, com a Terra de Israel refundada como Estado, viu nas paredes “judeus, saiam da Palestina”.
O recado é sempre o mesmo: deixem de existir.
…
Nas manifestações dos amigos e familiares dos invisíveis mortos e sequestrados pelo Hamas, o pedido era: “Não nos abandonem!”, “Tragam-nos já!” Pedem que não deixem de buscar seus entes queridos ou de ir atrás dos seus assassinos. E o governo de Israel vive esse dilema, de estar em um conflito inescapável, mas que nem o truculento e fascista Netanyahu desejaria. Duvido que algum judeu quisesse estar bombardeando Gaza. Mas me digam: devia-se cruzar os braços?
Não, ninguém enxerga isso.
Por quê? Porque somos invisíveis.
Porque o preconceito invisibiliza os seus alvos.
O antissemitismo estrutural está entranhado na cultura das pessoas e é avassalador. É um sentimento sorrateiro, que se confunde com falso progressismo. E, por isso, é chique.
…
O cientista político e escritor português João Pereira Coutinho escreveu na Folha de S. Paulo ótimo texto sobre a tendência citada acima entre sedizentes humanistas: a de que, na prática, “judeu bom é judeu morto”. Ressalvemos que, antes sob o nazismo e agora sob o naziterrorismo chique, nem mortos. Judeus degolados, estuprados e executados não comovem!
Coutinho cita a escritora Dara Horn e seu livro “People Love Dead Jews” (“As pessoas amam judeus mortos”), que conta o seguinte episódio: “Anos atrás, um funcionário do museu (de Anne Frank, a jovem que se tornou símbolo das vítimas judaicas na Shoá) tentou usar o seu quipá no trabalho. A direção foi contra e recomendou que ele usasse o adereço debaixo de um boné de beisebol. Por uma questão de ‘neutralidade’.”
Uau!
Coutinho então faz o comentário certeiro sobre o episódio: “Tem a sua piada: os guardiões da memória de Anne Frank ordenando a um judeu que voltasse a esconder o seu judaísmo. Provavelmente, alguém não gostou da piada e, após quatro meses de debate interno, o uso do quipá foi permitido.”
O cronista conta que já tentou visitar o museu, mas não conseguiu, tal a procura. Estava lotado por vários meses (a visitação é de 1 milhão de pessoas ao ano, em razão do diário da adolescente judia, um dos livros mais vendidos da História).
Ao contrário de Coutinho, este colunista já esteve lá e conseguiu entrar, talvez porque fosse janeiro e a temperatura estivesse nos literalmente enregelantes 17 graus negativos.
Continua Coutinho: “São episódios como esse que levam Dara Horn a formular a sua hipótese: as pessoas gostam de judeus, sim, mas apenas se eles já estiverem mortos. Aliás, para testar a sua hipótese, a escritora pede-nos para imaginarmos uma Anne Frank que, milagrosamente, sobrevivera ao Holocausto. E que, em plena velhice, estaria disposta a partilhar com o mundo as suas experiências em Auschwitz ou Bergen-Belsen. Haveria quem a escutasse, sem dúvida. Mas 1 milhão de pessoas todos os anos? Bilhetes esgotados durante meses? O fascínio com Anne Frank explica-se pelo seu precoce desaparecimento. Mas também pela mensagem ‘inspiradora’ que ela deixou no seu diário: a crença de que a humanidade é essencialmente boa, apesar de ter sido essencialmente má para com ela. Por outras palavras: gostamos de Anne Frank, acusa Dara Horn, porque ela nos absolve de qualquer responsabilidade. O mesmo acontece com Elie Wiesel: antes de publicar ‘A Noite’, essa meditação teológica sobre o silêncio e o abandono de Deus ante a tragédia do Holocausto, Wiesel tinha já publicado uma primeira versão da obra em ídiche. Em ‘E o Mundo Ficou em Silêncio’, a responsabilidade pelos crimes era atribuída a entidades mais terrenas, como os vizinhos, os colaboradores, os nazistas. Enfim, eu e você. O sucesso só aconteceu com ‘A Noite’.”
Ainda Coutinho, no seu ótimo texto:
“No fundo, gostamos de obras sobre o Holocausto, desde que elas tenham uma mensagem ‘positiva’. Essa é a razão, acrescento eu, pela qual as massas adoraram ‘A Vida É Bela’, de Roberto Benigni, e não ‘Filho de Saul’, a obra-prima de László Nemes. Claro que a hipótese de Dara Horn – as pessoas só gostam de judeus mortos e bondosos – também conhece suas exceções. Os judeus podem estar vivos, desde que sejam gênios, admite ela. Que o diga o jornalista Varian Fry, que em 1940 e 1941 partiu para Marselha com o fino propósito de salvar a ‘civilização europeia’. Como? Ajudando na fuga de centenas de escritores, artistas ou cientistas perseguidos pelos nazistas. De Hanna Arendt a Marcel Duchamp, de Max Ernst a Claude Lévi-Strauss, de André Breton a Marc Chagall, a lista é longa. Mas não será também uma forma elitista de eugenia intelectual? Salvemos os gênios, deixemos os outros para trás? A pergunta acabaria por perseguir Varian Fry até o fim dos seus dias.”
Ler Dara Horn atualmente é ainda mais perturbador.
Por quê? Porque até nossos mortos são invisíveis.
Mas segue Coutinho: “Dizem que o motivo é a guerra em curso entre Israel e o Hamas. Motivo ou pretexto? Obviamente, pretexto: o antissemitismo começou logo a borbulhar com as primeiras notícias dos massacres… em Israel. George Orwell explica essa dissonância cognitiva muito bem. Em 1945, quando os ingleses viram as primeiras imagens do Holocausto, Orwell lembrava uma simpática dona de casa que reagiu assim: ‘Por favor, não me mostre essas fotos, elas só me fazem odiar os judeus ainda mais’. Os ataques em curso não são contra ‘sionistas’, votantes de Netanyahu, fanáticos religiosos que apoiam os assentamentos ilegais ou genocidas antipalestinos. São ataques contra judeus só pelo fato de serem judeus. Mas não há que desesperar: se a escalada antissemita continuar rumo ao impensável, tenho a certeza de que um dia estaremos visitando as casas agora atacadas. Os proprietários só precisam nos deixar mensagens ‘positivas’ e ‘inspiradoras’ sobre a beleza da bondade humana.” E eu completo: é de chorar!
Shabat shalom!