Tenho minha ideologia, convicções de como o mundo seria melhor, com generosidade, solidariedade e justiça social na dose certa para não tirar ou até para promover as liberdades individuais. Creio que isso seja 100% social-democracia, e assim me vejo e não me envergonho dessa sinceridade. Filiação partidária? Nunca tive, porque me sentiria engessado e, também, por outros motivos poderosos que mostram hoje meu acerto em ser assim. Eu não poderia conviver com pessoas que me odeiam (na medida em que odeiam o grupo étnico-religioso do qual faço parte), e uma sigla ou algum personagem da política não deveria me obrigar a isso (inclusive é sempre legal lembrar que o judaísmo rechaça idolatrias, e o D’us judaico é incorpóreo, não podendo ser representado em imagens).
Mas por que essa ladainha?
Porque, mesmo achando que o liberalismo econômico dá copa franca ao egoísmo e à ganância e vendo muito cinismo entre seus defensores por vezes despidos de empatia com as camadas socialmente vulneráveis, cada vez me convenço mais de que partidos e ideologias muitas vezes são só um estilo de vida, não refletem necessariamente um pretenso humanismo. Conheço defensores do liberalismo econômico que, sim, acreditam nessa via para um mundo melhor. Pessoas excelentes, apesar de eu vê-las como equivocadas, porque não tenho dúvidas de que o egoísmo do ser humano precisa ser controlado e a ganância regulada.
Enfim, quero chegar aqui: vejo sedizentes humanistas, supostamente do campo progressista, completamente desprovidos de compaixão e empatia. Alguns discursos posteriores ao abominável pogrom de 7/10 em Israel desnudam a maldade de supostas pessoas “sensíveis”. Outro dia, um desses caras esculhambou o livro de uma jornalista amiga minha, falando coisas horríveis, tipo que o pai dela (jornalista icônico da imprensa brasileira, já falecido) sentiria vergonha por um ou outro errinho na obra, errinhos que também identifiquei quando li (sim, eu li o livro), mas que não tiram uma vírgula da qualidade do belo trabalho dessa talentosa amiga. Perceba: quem escreve sabe que a perfeição é inalcançável e que errinhos, numa obra de centenas de páginas cheias de informações, são humanamente inevitáveis, por mais que se revise (às vezes, só o próprio autor percebe). Meu querido amigo e colega de Sler Celso Gutfriend, poeta e psicanalista maravilhoso, uma vez brincou comigo dizendo que as imperfeições são um elemento a mais na arte, feita por humanos.
Mas fiquei pensando: esse sujeito implacável, que está entre os justificadores do monstruoso grupo terrorista e genocida Hamas e que se diz “socialista”, é um ser humanista e sensível? Uma pessoa humanista e sensível não deveria se dar conta de que provoca gratuitamente sofrimento na autora criticada com tanta crueldade (um doce de pessoa, aliás)? Passei anos criticando pesadamente o bolsonarismo e a extrema direita em geral. E mantenho intocadas essas críticas. Mas preciso ressalvar que o revestimento ideológico não necessariamente revela uma alma boa. Os naziterroristas que justificam o Hamas ignoram as vítimas judias (assassinadas com requintes de crueldade e sequestradas) e rejeitam a legitimidade de Israel como o lar refundado de um povo perseguido e discriminado em séculos de diáspora, são ignorantes e maus.
Ou seja, ideologia não é salvo-conduto para a bondade.
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Ouvi de pessoa próxima, judia, que, por questões familiares, ajudou muito, inclusive financeiramente, um jovem que se tornou rematado antissemita, repetindo a cartilha do partido, supostamente “de esquerda”, ao qual se filiou (digo “supostamente” porque, pela teoria da ferradura, aproxima-se muito da extrema direita, levando-me a compará-lo ao nazismo). Não vou relevar quem é essa pessoa e nem o jovem, que contou com o afeto e a disponibilidade dela desde criança. Mas compartilho em primeira pessoa o teor do triste desabafo desse amigo:
“São enormes as decepções que a vida tem dado, umas maiores que outras. Algumas muito sofridas! Só agora eu soube como fui ultrajado por um menino que ajudei a ter rumo na vida. Além de depreciar minha identidade judaica (isso é muito forte!) e demonizar minhas referências milenares na inigualável perseverança do meu grupo étnico, esse jovem nazista defensor de terroristas debochou do meu lugar de fala judaico como se fosse de gabinete, ignorando todo o violento trauma transgeracional cujo momento mais devastador vem de apenas uma geração atrás da minha. Ou seja, que eu ouvi direto de quem viveu a morte dos campos de extermínio, onde parentes meus jazeram. Para ti isso é pouco? Óbvio! Tu és um leviano desprovido de envolvimento, humanismo, noção e empatia! Uma das coisas que meus avós me contavam é que amargavam esse mesmo tipo de decepção dolorosa que tenho agora, só que na Europa dos anos 1930. Sou, segundo esse nazistinha, um “playboy do Bom Fim”. Eu?! Logo eu, seu nazista fantasiado de stalinista festivo?! Sempre vivi do meu salário de trabalhador, fiz faculdades no tempo correto e estagiando enquanto estudava, seu vagabundo antissemita! Nunca, desde jovem, fui sustentado! Aliás, ajudei, como tu sabes ou deverias saber. Me faltaria, conforme o jovem genocida (defende a morte de judeus), empatia para falar de palestinos mortos na reação israelense ao pogrom de crueldade inimaginável do 7/10 em Israel (em que morreram e foram sequestradas pessoas do nosso entorno)? Os invisíveis somos nós, seu sem-vergonha! E tu? Qual teu lugar de fala nisso?! Nenhum! A esmagadora maioria das pessoas chora as vítimas palestinas ignorando as israelenses naquelas execuções com requintes tétricos de crueldade inacreditável que os próprios terroristas filmaram orgulhosamente, porque são maus. Essa guerra estúpida não deveria existir! Deveria haver ali dois Estados soberanos e seguros, ambos os Estados, o árabe e o judeu, contemplando esses povos originários (e não venha com teorias antissemitas que tentam, para deslegitimar nosso lar ancestral, nos depreciar como povo, logo a nós!). Nazistalinista de butique, vocês são a nova roupagem do monstro em que o ser humano volta e meia se transforma.”
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Para ter contextos que ficaram de fora deste texto, sempre por questão de espaço (dá vontade de repeti-los infinitamente), leia outras colunas que escrevi recentemente sobre este assunto:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
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Shabat shalom
Foto da Capa: Freepik