Aqui vai um preâmbulo: antes de começar a coluna em si, preciso lembrar que o dia 27, este sábado, é o da reflexão anual sobre a Shoá (Holocausto), quando o mundo civilizado, lúcido, empático e humanista grita “We remember”. Lembro isso e comento algo que dias atrás me surpreendeu por eu nunca ter pensado no assunto. A amigona querida Cintia Moscovich, escritora e jornalista, disse que a minha história familiar é um “combo”. Eu ri muito, porque é uma ótima definição. Vejam bem: meus avós paternos vieram para o Brasil fugindo dos pogroms na Europa Oriental, e meus avós maternos vieram para o Brasil fugindo da Polônia (minha avó chegou aqui em 1939) no começo da Segunda Guerra. Curiosamente, meus pais têm 14 anos de diferença, e a mãe é a mais velha de cinco irmãos, enquanto meu pai é o mais novo de oito irmãos. A diferença entre esses tios é de uma geração e de duas tragédias.
Feito o preâmbulo, vamos ao texto em si, porque naturalmente ele tem tudo a ver com esse assunto, e confesso que, neste momento, não tenho condições de me focar em outra preocupação.
Você dirá: cara chato! E eu responderei: sim, sou!
Essa é uma conversa que já tive algumas vezes com meu querido amigo Roger Machado, atual treinador do Juventude e eterno ídolo do Grêmio. Se precisar ser chato, maçante, insuportável, na defesa de valores ou de uma causa que certamente é justa, aguentem-me, porque seguirei adiante mandando às favas os narizes torcidos. Eu e o Roger temos temperamentos e visões de mundo muito parecidos, e me orgulho de tê-lo como ídolo.
Mas, enfim, sou defensor das lutas identitárias e serei incansável na tentativa de iluminar caminhos nesse assunto. Naturalmente, faço isso com a alma quando se trata da minoria a qual pertenço.
Sou judeu e acho isso lindo.
Preciso exercer meu lugar de fala.
Vem do judaísmo os valores que cimentaram a sociedade civilizada de respeito às diferenças e humanismo.
Sou fã de todos os grandes nomes do judaísmo, mas muito em especial tem duas figuras que me fascinam. Uma é o filósofo Baruch Spinoza, um sujeito que vejo ainda como incompreendido na sua incrível lucidez ao explicar racionalmente a divindade. Sim! É isso que ele faz! E é por isso que eu disse às médicas que trataram (e curaram) minha filhinha quando ela teve uma doença séria: elas são anjos. Por que Spinoza tem a ver com isso? Porque ciência e Deus não são incompatíveis.
E assim é o Deus necessariamente incorpóreo judaico.
A ciência é divina, e a medicina por vezes opera “milagres”.
Ah, como isso era e é revolucionário! E como incomoda!
Mas não nos dispersemos.
O outro personagem judeu que me aproxima da fé contida nos valores do grupo étnico-religioso do qual faço parte é Hillel.
Hillel é um talmudista, um rabino, que viveu 120 anos justamente durante os primeiros anos da era cristã.
Era judeu como Jesus, claro. E nos deu as seguintes frases:
“O que é odioso para ti, não faça a teu próximo: esta é toda a Lei; o resto é mero comentário.”
“Se não eu por mim, quem por mim? Se eu for só por mim, quem sou eu? Se não for agora, quando?”
Duas pérolas na forma de palavras, não?
Como dizia outro gênio, Amos Oz, o que une o povo judeu é a palavra. E isso se deve ao livro (Tanach, Torá, Talmud…) e à própria existência de princípios escritos e muito lidos, muito interpretados, muito essenciais para sermos boas pessoas.
Veja bem: princípios que norteiam a bondade e a justiça, mas isso não quer dizer que todo judeu é uma boa pessoa.
Deixem essa estupidez pra nazistas e jihadistas.
Na própria Torá, todos os personagens têm falhas. Por quê? Porque só as regras divinas, só a vida, a natureza (oi, Spinoza!) nos dão o caminho. Particularmente, creio que, no dia em que todos respeitarem os valores éticos cujo eixo é o de não fazer ao próximos o que te é odioso, o Messias enfim chegou. E não me refiro a uma pessoa, me refiro ao ente coletivo.
Viram como posso ser racional e religioso?
Mas vamos lá. Repito: “Se não eu por mim, quem por mim? Se eu for só por mim, quem sou eu? Se não for agora, quando?”
Os judeus que têm consciência da sua identidade (asseguro que a esmagadora maioria) defende sua cultura, suas raízes étnicas.
Os judeus que têm consciência defendem Israel.
Os judeus que têm consciência são necessariamente sionistas.
Dá uma paz de espírito monumental e uma leveza reconfortante saber que a luta é contra moinhos de vento a nos açoitar com rajadas crudelíssimas e invisíveis como só o ar pode ser (invisíveis e vazias). Paciência que haja entre nossos detratores pessoas que se julguem humanistas e até intelectuais, e que realmente são. Estamos vendo em tempo real o caldo de cultura violento fomentado por uma ignorância e um negacionismo que tentam nos apagar. Segue aqui a quantidade enorme de textos que tenho escrito sobre isso. Peço que leia. É muito importante que essa tentativa de esclarecimento se dissemine.
Eis:
>> Antissionismo é antissemitismo
>> Os poréns seletivos que constroem narrativas desonestas
>> Compreenda o conflito israelo-palestino
>> Efeitos do antissemitismo estrutural
>> Não é preciso fazer montagem
>> A invisibilidade dos israelenses
>> Só se aperta a mão de quem a estende
>> A maldade independe de ideologia
>> Presidente Lula, enxergue-nos
>> A esquerda burra dá vida à extrema direita
>> Mais atenção às palavras
>> A narrativa vazia do “intelectual” antissemita
>> Aviso aos antissemitas: vocês nos fortalecem
>> A única opção justa: 2 Estados e 2 povos, Israel e Palestina
Esse caldo de cultura tomou conta da Europa nos anos 1930.
É idêntico!
Só me tranquiliza que ele não levará o mundo à loucura do nazismo e da Shoá (Holocausto). Por que não levará? Por diversos motivos, e um deles é a existência de Israel.
Na semana passada, eu escrevi, e agora repito: “Se de um lado havia um líder de extrema direita ignorante, cercado de negacionistas e com uma base prenha de neonazistas, com estúpidos capazes de defender que a Terra é plana, idolatrar a ditadura militar, homenagear torturadores, reduzir a sexualidade ao azul e ao rosa, imitar o Goebbles, rejeitar a importância da vacina e da ciência e se contrapor aos essenciais movimentos afirmativos de minorias vítimas de preconceito, de outro há uma esquerda antissemita e burra, capaz de justificar um grupo fundamentalista islâmico terrorista e expressamente genocida que traz ao mundo, com palavras atuais mas não menos perversas, tudo o que o alto clero católico fazia e na Idade Média contra “hereges” em geral, judeus em particular (sempre nós!), homossexuais, mulheres e outras minorias, só que agora querendo implementar o obscurantismo por meio de um califado tão assassino e expansionista quanto desejava Adolf Hitler com suas teses assustadoras do arianismo, só faltando os símbolos da fogueira (na inquisição) e dos fornos (na solução final nazista) para serem exatamente o mesmo.”
Temos que ir contra o vento, as marés e o mainstream.
Sigamos!
A luta é justa, e o sábio Hillel, o “sábio dos sábios”, nos deu todas as letras em poucas palavras. Se não fizermos, quem fará?
Logo, ao natural este espaço se tornou um bunker judaico.
Foi sem querer, mas acabou se impondo pela necessidade.
E cometerei uma inconfidência: tenho o maior apoio do meu queridíssimo amigo Luiz Fernando Moraes, o publisher da SLER, um homem sensível e bom, que, se vivesse na Europa dos anos 1930, certamente estaria entre os “justos entre as nações”, aqueles que tiveram a coragem e a personalidade de nos estender a mão. Muito obrigado, amigo. A luta continua!
…
Shabat shalom!