Faz já quase 40 anos, e eu era muito jovem quando ouvi “We are the world” pela primeira vez. Um arrepio percorreu meu corpo diante de tantos artistas fora de série juntos cantando pelo fim da fome na África (e no mundo, naturalmente). Depois, claro, veio a comercialização e a massificação da música, e confesso que ela se tornou insuportável. Até agora! A Netflix a resgatou.
A Netflix foi o Engov de “We are the world”.
Voltei a ficar arrepiado. Além da solidariedade sincera que transpira em cada minuto, acorde e palavra da música, ela proporcionou cenas estupendas. Tipo o tímido Bob Dylan rindo ao ver Steve Wonder imitá-lo ao piano, pra descontraí-lo antes de entrar em cena com a sua parte na gravação. Chegaram a pôr um cartaz na entrada do estúdio avisando que os egos não ingressariam ali. E assim foi. O show de talentos foi proporcional ao espetáculo de humildades e afetos. Foi um barato ver a humaníssima Cyndi Lauper pedir que não rissem enquanto ela cantava com aquela voz absurdamente linda e depois concluindo que eram suas bijuterias coloridas que atrapalhavam a gravação.
Mas fiquei triste, porque, ora, esse hino pop faz a gente pensar.
Lá no finzinho do comovente documentário “A noite que mudou o pop”, Diana Ross diz: “Acredito que todas as pessoas do mundo querem contribuir e não sabem como. Tenho a sensação de que estamos criando uma mudança no que ocorre hoje no mundo quanto a ajudar a outras pessoas, e isso é compaixão.”
Ouvi ela dizer isso e prestei atenção no radialista texano com seu chapelão, vestido de cowboy, chorando feito uma criança.
Enfim. Falemos desta primeira quadra do século 21.
Diana Ross e todos aqueles artistas fabulosos certamente jamais imaginariam que a Era de Aquário seria uma fase da humanidade em que nunca foram tão explícitos o cinismo, o egoísmo, a defesa da desigualdade como fator essencialmente humano (é exatamente o oposto, o humano é gregário, vive em sociedade, ajuda o outro, não é selvagem. Vocês que defendem isso são maus!), a falta de empatia, o racismo e o antissemitismo exasperantemente explícitos como não se via há 80 anos.
Nesses 40 anos desde a gravação de “We are the world” (composição de Lionel Richie e Michael Jackson), o mundo degringolou impressionantemente. Os valores que aquela música trazia hoje seriam definidos por figuras abjetas como “mimimi”. Seres desprezíveis enchem a boca para se dizer “de direita”, reacionários se julgam incompreendidos, nazistas e fascistas de diversas vertentes reclamam de supostamente serem cerceados na sua “liberdade de expressão” (e nisso incluo desde os fãs de torturadores até os justificadores de grupos terroristas).
O que houve conosco?!
Por que ficamos tão maus?
USA for Africa
O documentário revisita a produção de “We Are The World”, mostrando os bastidores em torno da lendária gravação que ocorreu nos estúdios da A&M Records em Los Angeles, em 1985. A canção alcançou consagração mundial após seu lançamento original em 7 de março de 1985 pela gravadora CBS (atual Sony Music). Ao todo, foram comercializados mais de 20 milhões de cópias, configurando um dos singles mais vendidos da história da música.
O lendário produtor americano Quincy Jones, responsável por sucessos de grandes nomes do jazz, soul e R&B entre os anos 1960 e 1970, recrutou alguns dos maiores nomes da música pop da década de 1980 para que pudessem doar um pouco de cada um de seus talentos para uma causa nobre: combater a fome na África. Para isso, foi criado o supergrupo USA For Africa (designação de United Support of Artists), que contou com a participações de ícones da música mundial como Billy Joel, Ray Charles (1930-2004), James Ingram (1952-2009), Tina Turner (1939-2023), Bob Dylan, Daryl Hall & John Oates, Cyndi Lauper, Bruce Springsteen, Kim Carnes, Paul Simon, Stevie Wonder, Diana Ross, Harry Belafonte (1927-2023), Kenny Rogers (1938-2020), entre muitos outros, incluindo também atores.
“Em uma noite de janeiro de 1985, as maiores estrelas da música se reuniram para gravar ‘We Are the World’. Este documentário mostra os bastidores desse evento histórico. Contada por meio de incríveis imagens de arquivo dos bastidores e entrevistas com a realeza da música, essa é a extraordinária história da maior noite do pop”, diz a sinopse de “A Noite que Mudou o Pop”.
Quincy Jones, já experiente, bem-sucedido, consagrado e disputado produtor na indústria musical, providenciou do lado de fora dos estúdios da A&M Records o cartaz com a frase: ‘Deixe seu ego do lado de fora’. E como funcionou!
O projeto USA for Africa existe até hoje e desde a época em que foi iniciado, recebeu doações superiores a US$ 100 milhões.
Mas, aterradoramente, percebemos que o mundo não mudou.
Veja e se emocione.
E não impeça que uma lágrima corra pelo seu rosto.
De saudades daquilo que naquela época queríamos ser.
Shabat shalom!
Mais textos de Léo Gerchmann: Leia Aqui.