Como a minha coluna é publicada às sextas-feiras, fico distante das crônicas dominicais de jornais. Mas quero falar sobre duas que se completaram maravilhosamente no fim de semana anterior. Curiosamente, ambas nos jornais em que trabalhei praticamente por toda a minha carreira dentro de redações. Foram 24 anos em Zero Hora e Folha de S. Paulo. E as crônicas são dos excelentes Martha Medeiros e Antonio Prata (pra mim, o sucessor do LFV).
Antonio na Folha: “Não há radicalismo em ser ogro em tempos de ogros, em ser bárbaro na barbárie.”
Martha em ZH: “Você apenas se posicionou, mas ele entra em surto, fecha a cara e não quer mais brincar.”
O Antonio falava em polarização; a Martha, em como, mesmo numa conversa amigável, ao destoar, você provoca a ira do interlocutor.
As duas crônicas são como códigos combinados no sistema jurídico. Manja? Quando um artigo reforça o outro.
Com a Martha eu cheguei a falar num grupo de WhatsApp que temos em comum. Defini a crônica dela como a definitiva neste 2024, a melhor do ano. Mas, como estávamos num grupo, evitei me aprofundar em como isso tudo tem a ver com a tal polarização.
O Yuval Harari já disse faz tempo, no Sapiens, que as pessoas não são mais donas das suas narrativas; a “lógica” se inverteu. As pessoas, em geral, tornaram-se reféns de suas narrativas.
Tem a ver com vários elementos neste mundo virtual que é de uma maluquice muito real. Veja bem! Você antes dava uma opinião tola e, em seguida, batia com a mão na testa e dizia pra si mesmo: “Putz, que bobagem eu disse.” E ok. Dava tempo de rebobinar.
Agora, você escreveu a sua merda numa rede. E… fodeu!
Não tem volta. Merda pescada e consumida.
Mas essa é só uma parte do estrago cognitivo.
A polarização faz com que criemos narrativas, partidos e políticos de estimação. Aí se vê por aí médico defendendo a cloroquina, se opondo à vacina e jurando que a Terra é plana; e se vê também “humanistas” abraçados com terroristas, genocidas e aiatolás obscurantistas e defendendo a relativização de uma “democracia” com votos fraudados e oponentes proibidos de concorrer.
Toc! Toc! Toc! Alguém em casa?
O Tico falou com o Teco?
Vamos pôr a bola ao centro e recomeçar o jogo?
O cara que não suporta uma simples ponderação da Martha é o mesmo ogro do Antonio, que se acha muito “antissistema”.
São crias da mesma enfermidade.
A sociedade está completamente louca, e esse comentário é ambidestro. Tarados à direita e à esquerda.
Tenho feito o seguinte exercício: no meio de uma conversa, eu ressalvo. “Ei, você não vai me empurrar pra um lado, não quero.”
Porque é isso que ocorre.
Quando você percebe, está empunhando uma bandeira sem nem entender como aquilo foi parar na sua mão.
Nem vou falar do cara que é reacionário e se aproveita de alguma reprimenda em comum, a algo que o lado oposto fez pra exigir que, por causa dessa reprimenda, você também se torne reacionário. Indo ao grão: não é porque um governo supostamente progressista faz um monte de nojeiras que você vai deixar de ter uma índole e uma visão generosa e solidária, mesmo não votando mais em quem fez as nojeiras. Talquei? Não rola a cooptação ideológica!
Mas vamos ao futebol, que, supostamente, é uma área amena.
Vou contar uma experiência que creio resumir essa história. Os personagens são eu e um cara com quem tenho afinidades, torcemos para o mesmo time, somos pesquisadores a respeito desse time e até nutrimos apreço pelo mesmo campo ideológico.
O cara é crítico ao clube por priorizar as Copas (Libertadores e Copa do Brasil). Eu entendo a posição do sujeito. Digo que a prioridade deve ser sempre a sobrevivência na série A do campeonato brasileiro, de pontos corridos. Coincido que é temerário usar times reservas e correr riscos. Mas… ai… digo que, pra mim, o torneio mais importante que existe é a Libertadores, porque é o título continental, leva o clube às páginas de jornais e sites mundo afora, dá prestígio que transcende fronteiras, garante vaga pra decidir o mundial, etc. Ou seja, eu concordo que a prioridade deve ser a sobrevivência na série A, mas amo a Libertadores.
Achei que o cara entendeu. Num primeiro momento, ele ficou bravo, mas supus que reconsiderou quando “desenhei”. “Se me derem duas escolhas”, eu disse: “1) não ser campeão da Libertadores e ficar na série A, ou 2) conquistar a Libertadores e ser rebaixado, eu escolho a opção 1. Amo a Libertadores, mas priorizo a série A”.
Pensei que tinha sido suficiente.
Meses depois, diante de uma derrota do nosso time no Brasileirão com os jogadores reservas, vem uma mensagem do sujeito: “Continua desprezando o campeonato brasileiro!” E… me bloqueou. Nem deu pra ele ver que a minha resposta coincidia com a opinião dele. Sem perceber, eu me tornei “o desprezador do Brasileiro”.
Pronto! Empunhei uma bandeira que nem é minha.
Uau! Depois do espanto, eu ri.
Pra deixar claro: ser campeão brasileiro, da Libertadores ou da Copa do Brasil, tanto faz, me leva a ir pra Avenida Goethe gritando, buzinando e agradecendo ao fato de haver ali ao lado o Hospital Moinhos de Vento, porque são grandes as chances de coma alcoólico motivado por muita paixão e alegria.
E, antes de voltar a pedir que me tirem dessa “lógica”, repito a frase que mais tenho dito: o mundo está muito louco!
Resta dizer, como sempre. Shabat shalom!
Foto da Capa: Freepik
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