Sou um privilegiado, porque, diante da tragédia que desabou sobre nós no Rio Grande do Sul, só me faltaram alguns produtos e água. O pior dos meus horrores foi olhar ao lado e ver o drama alheio. Isso está acima de qualquer corpo sujo e fedorento.
Isso, sim, tira o sono.
Quero falar neste texto sobre duas constatações que a tragédia em Porto Alegre traz. Uma é a impressionante loucura que a geração dos nossos filhos tem vivido, e outra é os sem-noção.
Começo pela loucura.
Tenho quase 60 anos e não vivi, por mais de meio século, um período em que ocorrem uma pandemia avassaladora, um pogrom que destapa o antissemitismo explícito que não víamos por aí desde os anos 1940 e, agora, o drama desta cheia.
Nos tocou viver esses absurdos na última meia década.
Meus filhos, de 17 e 22 anos, experimentaram as sensações de fragilidade e impotência que nos provocam a terra arrasada, o ambiente de guerra que temos vivido frequentemente.
É tudo muito assustador. Parece que pulamos de uma vida sem sobressaltos para uma ficção científica repleta de cenas dramáticas, suspenses, situações em que vamos ao limite.
Se faz necessária aqui uma ressalva: a minha geração viveu a gravíssima ditadura cívico-militar, durante 20 anos, mas a sua face mais brutal e tenebrosa ocorria nos porões, e a maioria das crianças e dos jovens apenas ouvia rumores, sequer havia internet e redes sociais, e a vida na superfície aparentava normalidade. Eu próprio participei de política estudantil secundarista e principalmente universitária, aderi a greves e levei cacetada em passeatas contra a censura, a favor das verdadeiras liberdades individuais (não a liberdade pra ser egoísta, que essa inclusive era muito incentivada) e do voto direto (tive idade para votar pela primeira vez exatamente quando o voto voltou a existir, pra governador, em 1982, quando fiz 18 anos).
E é nessas horas que aparecem os grandes homens. Tenho a honra de dizer que meu filho e minha filha, depois de terem participado de ações voluntárias com seus colegas e amigos, ficam na internet à caça de locais onde podem ajudar.
Criei dois heróis, dois gigantes, dois seres humanos dignos de serem caracterizados por essa expressão. E digo de boca cheia.
Levo fé nessa gurizada, tchê!
Mas a tragédia também destapa a triste bizarrice dos sem-noção. Já tivemos figuras como os entusiastas daquele placebo chamado cloroquina, os negadores da vacinação, os sedizentes humanistas que festejam pogroms e os aliados de aiatolás.
Vamos, agora, a uma listinha de 10 pontos atualizada?
1 ) O abobado que fica postando a imagem do jogador de futebol do seu time para atestar suposta superioridade moral de um clube (houve jogadores de Grêmio e Inter fazendo voluntariado, e a eles vão meus efusivos aplausos).
2 ) Sem sair do futebol, essa “caixinha de surpresas” nem sempre agradável, temos também os tarados que ficam comparando em fotos qual dos estádios foi mais atingido pelas chuvas, como se isso também mostrasse algum tipo de superioridade.
3 ) Ainda no futebol, eu juro que vi um desses “influencers” (putaqueopariu, que praga!) vibrando porque a tragédia climática favoreceria o seu time em meio a um calendário duro do futebol brasileiro. Ueba, o cara achou um “lado bom”.
4 ) Tarados que reclamam de frivolidades como agendas alteradas, barulhos de helicópteros, a falta que lhe faz um mate, a necessidade de recorrer ao banho de canequinha por uns dias e, até mesmo, a “chatice de assunto tão aborrecido”.
5 ) O imbecil sectário de direita ou esquerda que se enrola na bandeira de um partido político ou de um homem público e aproveita a ocasião para mostrar como o adversário está errado por este ou aquele motivo e por que isso provoca a tragédia.
6 ) O sexto ponto é a ressalva do quinto. É evidente que, quando falei dos personagens acima, eu me referi a pessoas que fazem parte do ambiente civilizado. Não me referi a terraplanistas e negadores da crise climática. Esses são sem-noção crônicos.
7 ) O cara que tem um problema de fácil resolução e baixa periculosidade, mas insiste em acionar o 190 quando as viaturas da Brigada Militar certamente têm muito mais o que fazer diante de tantos flagelados esperando socorro.
8 ) O sujeito que é sócio de um clube social e reclama (em vez de se orgulhar), no grupo de Whatsapp, que não pode usar a piscininha termiquinha porque a entidade tomou a decisão acertadíssima de dar abrigo a pessoas necessitadas.
9 ) O ultradireitoso empedernido que defende as tais “liberdades individuais” (putaqueopariu, que praga!), justifica desigualdades sociais, é muito cínico, hipócrita e egoísta e, sendo assim, não percebe que o sucateamento do serviço público é um veneno.
10 ) O cara que não entende um (apenas aparente) paradoxo: qualquer pessoa mentalmente sadia está triste, talvez deprimida e certamente estressada ao ver uma tragédia devastadora, com tanta gente sofrendo muito e cenas de desamparo e morte.
…
Adoro usar uma expressão apropriada para esse assunto: a do “algoritmo orgânico”, aquele que temos dentro do nosso cérebro e que nem sempre funciona bem. Aquele do tico que avisa o teco sobre o quão inadequadas são uma ação ou uma palavra.
Certamente há mais exemplos do inesgotável time dos sem-noção, que se repaginam e nem sempre têm ideologia definida. E não tenho dúvida de que a expressão “pra rir ou pra chorar?” fica inapelavelmente vazia. Decididamente, eu choro.
Shabat shalom!
Foto da Capa: Secom | RS
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