Em novembro, se completa meio século de um dos episódios mais bizarros da história latino-americana. Uma história tétrica que fica dentro de outra história tétrica sobre o corpo de Evita.
Em resumo, um intercâmbio de cadáveres.
Vamos começar pelo fim. Após o retorno do ex-presidente Juan Domingo Perón de seu exílio madrilenho à Argentina, em 1973, e com o triunfo nas eleições daquele ano, tendo a esposa Isabelita como vice-presidente, cresceu a pressão para que os restos mortais da ex-primeira-dama e rainha dos “descamisados”, Evita Perón, fossem repatriados de seu sinistro périplo.
Isso ocorreria, porém, só depois da morte de Perón, em 1974. E sob uma situação muito surreal, que mostra como o realismo fantástico latino-americano teve, a título de fonte, farto material captado na realidade. O que finalmente fez o corpo embalsamado de Eva retornar à Argentina foi o roubo de outro cadáver: o do general Pedro Eugenio Aramburu, o ditador que havia liderado a “Revolução Libertadora” de 1955 (que derrubou Perón após 10 anos de governo) e, sendo o maior perseguidor dos peronistas (impulsionador da “desperonização”), encomendara o sequestro da ex-primeira-dama. Aramburu foi sequestrado e executado, em “juízo revolucionário”, pelo grupo guerrilheiro peronista Montoneros em 1 de junho de 1970.
A mesma guerrilha que havia executado Aramburu subtraiu seu corpo do cemitério da Recoleta e exigiu como resgate que o novo governo de Isabel Perón trouxesse de volta a “companheira Evita”. Esse episódio incrível permitiu que, em novembro de 1974, o corpo de Evita enfim retornasse ao seu país, onde foi restaurado, embalsamado e exibido junto ao de seu marido na cripta funerária da residência presidencial de Olivos.
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Mas vamos à história completa, lembrando sempre que há toda uma cultura argentina em relação a cadáveres. Um curioso fetiche que inclui a amputação das mãos de Juan Domingo Perón e Che Guevara sem que se sabia ainda hoje onde elas estão.
E, para de imediato remover qualquer ar de superioridade em relação à suposta selvageria dos vizinhos, também cabe recordar alguns rasgos culturais semelhantes nos nossos pagos. Como conta o professor Cláudio Júnior Damin (Unipampa) no livro “Triste fim de Gumercindo Saraiva” (Acervus Editora), a cabeça do líder maragato, há exatos 130 anos, também não teve descanso após ser subtraída do resto do corpo numa mutilação. A morte de Gumercindo, em combate, ocorreu em 10 de agosto de 1894. A guerra civil federalista, marcada pelas degolas, começou em 1893 e terminaria em 1895, poucos meses após a morte de Gumercindo, aos 41 anos, com seu corpo tendo sido exposto na beira da estrada e, na mutilação, a cabeça sendo arrancada, sem que se saiba ainda hoje onde está (como as mãos de Che e Perón). Aliás, vale ressalvar que o presidente da província, Júlio de Castilhos, rejeitou usar a cabeça de Gumercindo como uma espécie de trunfo, como fora usada a de Tiradentes. Mas onde foi parar o “troféu”? Ninguém sabe ao certo.
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Pois então. Feita a justa ressalva, voltemos à Argentina. O general Pedro Eugenio Aramburu, que comandou o país de 1955 (com a derrubada de Perón, três anos após a morte de Evita, em 1952) a 1958, confiou o corpo da líder dos descamisados, perigosa também como memória e culto, ao tenente Carlos Moori Köenig, chefe do Serviço de Inteligência do Exército (SIE). O historiador argentino Felipe Pigna conta que a ordem era sequestrar o corpo e dar-lhe “um enterro cristão”, mas “clandestino”, depois de tê-lo tirado da sede da CGT. E o que fez Moori Köenig? Desobedeceu a Aramburu. Ordenou que seus homens levassem o corpo em uma caixa comum e sem identificação e tentassem escondê-lo em diferentes partes de Buenos Aires. Moori Köenig disfrutou da companhia de Evita em passeios pela cidade no seu furgão, restando às mais variadas versões o uso que lhe deu, alguns deles impublicáveis.
Só que seus movimentos foram seguidos por membros da resistência peronista, que observavam o caminho do corpo e deixavam velas e flores da planta Myosotis, mais conhecida como “não me esqueça”. Moori Köenig, um evidente tarado, ficou com a mente ainda mais perturbada e paranoica.
Como está registrado pelo historiador Pigna e também no ótimo livro “Santa Evita” (de Tomás Eloy Martínez), Moori Köenig, muito contrariado, teve de colocar o corpo embalsamado aos cuidados de seu imediato, o major Eduardo Arandía, e este escondeu o caixão no sótão da própria casa, onde também viviam a esposa grávida e a filha pequena. Mas o cara, ansioso em razão das circunstâncias, também enlouquecido e possivelmente tomado pelo fervor da mesma mórbida paixão proibida, teve insônia diante da incômoda hóspede, apesar do seu silêncio quase sepulcral. Conta Pigna: “Uma noite, Arandía ouviu barulhos e, acreditando que era um comando peronista que vinha resgatar o corpo, pegou sua pistola 9 milímetros e esvaziou o pente em um vulto que se movia na escuridão: era a sua esposa grávida, que caiu morta no local.” Após essa tragédia, Moori Köenig retomou o desejado corpo de Evita e o levou para uma pequena sala ao lado de seu escritório, onde o colocou na posição vertical, escondido dentro de uma caixa que originalmente guardava material para transmissão de rádio. Era todo um troféu! As pessoas iam visitar o militar, e ele estufava o peito apresentando a relíquia que guardava semiclandestinamente na Avenida General Paz, número 500.
Você sabe, porém, que nem toda visita é discreta e tem bons modos. A jovem María Luisa Bemberg, futura cineasta, ficou horrorizada e revelou o segredo a um amigo de sua poderosa família que tinha um importante cargo militar. Assim, o périplo macabro chegou aos ouvidos do capitão Francisco Manrique e, consequentemente, de Aramburu, e o presidente substituiu Moori Köenig pelo tenente-coronel Héctor Cabanillas, um antiperonista fervoroso, a ponto de ter organizado ataques frustrados contra o ex-presidente no exílio espanhol. Cabanillas, então, propôs retirar o corpo do país e, em 1957, detonou a “Operação Transferência”, ou “Operação Evasão”.
Cabanillas, que viveu até 1998, explicava que sua decisão de levar o corpo para o exterior teve diversos motivos. Claro, havia informações de que comandos peronistas estavam preparados para resgatar o cadáver e usá-lo como culto e bandeira política. Mas também porque integrantes do governo pretendiam desaparecer o corpo, jogando-o no Río de la Plata (seria uma prévia dos tristes “voos da morte” da ditadura argentina de entre 1976 e 1983) ou explodindo o próprio prédio do Serviço de Inteligência do Exército para que os restos mortais sumissem.
Então, o corpo de Evita rumou para a Itália, operação, conforme revelou Cabanillas em depoimento, que foi exitosa “graças à intervenção ativa e muito especial da Igreja Católica”. O próprio papa Pio XII, segundo ele, “interveio diretamente para abrir o caminho”. O Vaticano comprou um túmulo em um cemitério de Milão e ficou encarregado de processar os papéis para a chegada do corpo. Em abril de 1957, o caixão de Eva Perón foi transferido de navio para Gênova, fazendo-o passar como o de uma viúva italiana que havia morrido na Argentina chamada María Maggi de Magistris. Pigna conta que os dois homens encarregados da transferência tiveram um susto quando chegaram ao porto genovês, pois encontraram uma grande multidão esperando a chegada do navio e temiam que fossem adoradores de Evita. O grupo, no entanto, aguardava por partituras do compositor Giuseppe Verdi que viajavam no mesmo navio e haviam sido repatriadas do Brasil. Veja bem, que loucura!
Evita passaria 14 anos enterrada sob uma lápide falsa no cemitério Maggiore, de Milão. Uma freira chamada Giuseppina, a “Tia Pina” foi paga para levar regularmente flores ao túmulo sem saber quem era realmente a pessoa enterrada naquele lugar. Nem ela nem ninguém (ou quase ninguém) sabia.
O destino do corpo de Evita foi um mistério para os argentinos até 1970, quando um grupo de jovens Montoneros (idades entre 22 e 23 anos), em 29 de maio daquele ano, sequestrou para, na madrugada de 1 de junho, fuzilar Aramburu, acusando-o, entre outras coisas, de ter feito Evita desaparecer. No período em que esteve cativo, antes de ir para o “paredón”, Aramburu contou toda a história e deu as coordenadas para chegar ao corpo em Milão, achando que com isso teria a vida poupada – o que não ocorreu. E foi então que o general Alejandro Lanusse, propôs um “Grande Acordo Nacional” com Perón e ofereceu devolver ao ex-presidente exilado os restos mortais de sua esposa. Cabanillas organizou a Operação Devolução e, meses depois, o corpo foi exumado e levado numa caminhonete, por estrada, para a residência de Perón em Madri. Lá na residência do líder peronista, havia a sua nova esposa, María Estela Martínez, a “Isabelita”, que viria a ser vice-presidente de Perón em 1973, presidente com a morte de Perón em 1974 e derrubada pelos militares no golpe militar que instaurou a violentíssima ditadura de 1976 a 1983. Em 1974, houve o intercâmbio de cadáveres e o retorno de Evita.
Mas vale muito a pena recordar outro elemento perturbador: Isabelita era afeita ao esoterismo. Enquanto o corpo de Evita esteve na residência em Madri, Isabelita praticou cerimônias secretas de “transmutação de poder”, de mãos dadas com o seu braço direito, José López Rega, conhecido como “El Brujo”. Queriam fazer uma transmutação do carisma de Evita. E a história comprovaria que isso, se realmente ocorreu, foi inútil.
O que realmente ocorreu foi a posse de Isabelita como uma frágil presidente, tendo “El Brujo” como principal assessor, e o intercâmbio tétrico, que ocorreu em 17 de outubro de 1974, a partir do sequestro do corpo de Aramburu pelos montoneros em 15 de outubro. Os corpos de Evita e Perón chegaram a ficar lado a lado na residência oficial de Olivos entre 1974 e 1976. Em 1976, com o golpe militar, terminou a “Lua de Mel”. Chegaram a cogitar novamente jogar o corpo de Evita no rio. Que fixação com esse método! Mas entregaram para a família. Hoje, o corpo de Evita descansa no Cemitério da Recoleta, o de Perón em um mausoléu em San Vicente (foi levado para lá em 17 de outubro de 2006, após ter sido enterrado no Cemitério de Chacarita). Isabelita Martínez de Perón, aos 93 anos, ainda vive em Madri. Depois do golpe que a apeou do poder, nunca mais voltou.
Shabat shalom.
Foto da Capa: Reprodução da série Santa Evita, Star+
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