Volta e meia, exerço meu lugar de fala judaico neste espaço. E creio que isso seja altamente legítimo, porque toda minoria precisa ter seus espaços. Eu os ocupo, de cara limpa e com muita paixão (por que não?). Sou defensor da pauta identitária, da pluralidade, da informação como forma de combate ao preconceito e, claro, do respeito ao diferente e da inclusão. Nos meus livros, falo em negritude, falo em homossexualidade e, em “A Fonte, a incrível história de Salim Nigri” (AGE), fecho uma espécie de trilogia acerca do meu time do coração ao abordar o judaísmo.
E agora pretendo fazer uma explanação que julgo importante.
O antissemitismo é tão sorrateiro e perverso, que muitos judeus têm vergonha de assumir suas raízes étnicas. O cara teme ser rotulado dos mais diversos absurdos que já se disseram sobre os judeus, teme ser diferente, se acha antiquado e até meio caretão (conheço essa triste confusão). É uma espécie de autocensura, de auto-ódio. Pois comigo é o contrário. Louvo a autenticidade, valorizo minhas raízes e mando às favas os rótulos. Devo confessar inclusive que tenho ojeriza de judeus capitães do mato que pusilanimemente renegam ou dão pouca importância à sua identidade (e tem uns q se acham muito bacanas ao fazerem isso).
Mas vamos lá: primeiro dois esclarecimentos essenciais. Quando falo em antissionismo, não me refiro a quem critica o governo de Israel e suas ações eventualmente descabidas (muitas vezes eu próprio endosso essas críticas). Refiro-me a quem nega aos judeus a legitimidade do seu único lar ancestral, a sua referência territorial. Também ao falar de sionismo não me refiro necessariamente a quem quer fazer “aliá” (ir morar em Israel), mas também a quem defende e se identifica com Israel. Encho a boca para dizer que, sim, sou sionista. Mais: sou radical a ponto de achar que todo judeu deveria obrigatoriamente sê-lo.
Lembre que todas as sinagogas, literalmente há milênios, são voltadas para Jerusalém (nem que seja só ao rezar, todo judeu pratica uma espécie de sionismo, desde séculos e séculos antes de existir o atual conflito e a má vontade em relação ao refundado Estado de Israel). Perceba que a Terra de Israel é citada centenas de vezes no Antigo Testamento (na Torá e nos outros dois livros que o integram), o que confere, no mínimo, uma espécie de registro juramentado por escrito na publicação mais antiga e mais popular da história humana (mesmo que achemos a Bíblia uma coleção de parábolas, ela em si é um fato existente desde tempos imemoriais). É pouco?
Feitas as ressalvas, vamos ponto por ponto:
1) Quando o antissionista chama Israel de Estado artificial (já ouvi esse despautério), está cometendo uma violência cruel e descriteriosa. Por que “descriteriosa”? Porque é o oposto! A maioria dos países foi criada por divisas aleatórias (no próprio Oriente Médio) e muitos foram colonizados por pessoas de origens alienígenas. Israel não! O próprio Brasil, para ser “natural”, deveria ser indígena. Em Israel, os judeus são os próprios indígenas, assim como os árabes locais. Sabemos que tudo na vida é convenção, das fronteiras aos países, passando pelos times de futebol. Por que logo Israel recebe essa crítica, no caso, por uma cruel ironia, completamente invertida e injusta?
2) Quando o antissionista chama Israel de “genocida” ou “apartheid”, comete dois erros graves: o genocida deliberadamente quer eliminar uma nação ou povo (exatamente o que grupos como o Hamas querem fazer, mas não conseguem justamente porque Israel se defende. Mas o que vale é a intenção. Num paralelo, nem todo fascista consegue implementar o fascismo, mas ainda assim ele é fascista). E “apartheid”, ora, veja os árabes que participam de todos os setores da vida israelense (do parlamento à seleção de futebol, passando por todas as profissões) e compare com os negros na África do Sul! E outra observação é a de que, com tantas atrocidades reais mundo afora, por que essa obsessão (muitas vezes injusta) logo com Israel?
3) Cabe aqui um item correlato. Escrevo esses textos porque o comum na mídia ocidental é definir uma operação israelense como “ataque”, quando na verdade se trata de defesa (as agências de notícias internacionais distribuem textos normalmente com esse viés contaminado pelo maniqueísmo). Nunca, nem no pior governo israelense, houve uma ação deliberada de atacar árabes pelo desejo de eliminá-los. Quando o tal “ataque” ocorre, é porque houve uma agressão com mísseis ou porque a inteligência israelense identificou o planejamento de uma ação terrorista.
4) Quando o antissionista nega o direito de Israel existir e se defender, ignora todas as violentíssimas perseguições a que os judeus foram submetidos em pogroms, inquisições e “holocausto” (prefiro a expressão “shoá”) em 1,9 mil anos da diáspora decorrente da expulsão pelo império romano no ano 70. Já contei aqui que quando fui correspondente da Folha de S. Paulo na Argentina ouvi de dezenas (isso não é exagero) de sobreviventes o alívio de hoje ter quem os defenderia e acolheria.
5) Quando o antissionista descaracteriza o judeu como povo e contraria quem em contexto anterior dizia o oposto (isso varia ao sabor das circunstâncias) para deslegitimar Israel, ignora a própria genética e, muito mais grave, a definição dicionarizada de etnia e a impressionante perseverança judaica de preservar sua resistente cultura comum, sua língua comum, seus rituais comuns, seu território originário comum (os itens que configuram um grupo étnico). O judeu inclusive deveria ilustrar o verbete “etnia” no dicionário. É seu exemplo acabado.
6) Vale aqui um item correlato e revelador. O pai do Amos Oz, nascido em Vilna, foi viver em Israel ainda no início do século passado (Amos Oz nasceu em Jerusalém), antes da refundação do Estado judeu. E comentou uma ironia. Quando ele vivia em Vilna (capital da Lituânia, na Europa Oriental), lia nos muros e paredes as pichações “judeus vão para a Palestina”. Quando foi visitar a cidade onde nasceu, deparou com as pichações “judeus, saiam da Palestina”. Amos Oz, um gênio pacifista defensor de dois Estados, conta essa história no lindo livro autobiográfico “De amor e trevas”.
7) O antissionista ignora que o território chamado de Palestina, onde hoje estão Israel e os territórios palestinos, antes foi a Judeia (como havia a Galia e a Germânia, hoje França e Alemanha) e, ainda antes, a Terra (Eretz) de Israel, formada pelas 12 tribos hebréias – nome que voltou a ser usado em 1948. Tornou-se “Palestina” por conta dos romanos, que, no seu violento império, para varrer os judeus (etnia que era vítima de desprezo), trocaram o nome usando como inspiração o gentílico “filisteus”, que eram os principais inimigos dos hebreus. Ou seja, até na designação daquela área há um vício de origem.
8) O antissionista nega a variedade de sionismos. Até há o sionismo de perfil conservador que desejaria uma Israel bíblica, do Jordão ao Mediterrâneo, mas o sionismo amplamente majoritário é o que defende o estabelecimento de dois Estados para dois povos (Israel e Palestina) que vivam em paz e segurança. Ou seja, é muito comum o sionista ser também defensor da causa palestina. Um anseio não exclui o outro. E é importante lembrar que a partilha estabelecida pela ONU em 1947, aceita pelos judeus, foi rejeitada pelos palestinos, que entraram em guerra contra Israel em 1948, provocando a reação e a ocupação de territórios por segurança e desencadeando ali os conflitos que tristemente se mantêm.
9) Quando o antissionista fala em árabes que tiveram de deixar suas casas quando houve a independência de Israel (o que evidentemente é algo triste), é ignorada a mesma quantidade (algo como 700 mil pessoas) de judeus tristemente expulsos de países como o Iraque (principalmente) apenas por serem judeus. A diferença é que Israel os acolheu, porque o Estado judeu foi refundado com uma base marcante justamente de refugiados que não tinham onde viver, seja da Europa ou do próprio Oriente Médio. Esse processo todo é doloroso, mas complexo e com diversas pontas. Está longe de ser uma ação deliberada de judeus malvados.
10) Há outros elementos a serem lembrados, mas quero fechar em 12 itens (as 12 tribos). Quando existem conflitos entre israelenses e palestinos, costuma-se falar em desproporcionalidade. Mas, para que isso não ocorra, Israel (que se viu obrigado a criar uma tecnologia de ponta também na área da segurança) precisaria deixar de se defender, permitir que matem os seus. Ou seja, deixar de os foguetes palestinos atinjam seus alvos civis aleatórios. Por outro lado, os grupos terroristas usam homens-bomba e escudos humanos em escolas e hospitais, e isso nunca foi segredo.
11) Várias outras distorções podem ser citadas. O uso da bandeira de Israel por grupos cristãos fundamentalistas ultraconservadores de extrema-direita é uma aberração e um desrespeito, vinculados a delírios messiânicos oportunistas e traiçoeiros que poderiam ser tema de uma coluna à parte. A Israel desses obscurantistas, aliás, é imaginária. Em Israel, os direitos civis e a diversidade são exemplarmente defendidos, em ações, passeatas gigantescas e políticas públicas.
12) Quando o antissionista me diz que não é antissemita, eu saco o argumento do meu lugar de fala. E ainda ironizo. “Nem meu lugar de fala é respeitado?”. Em resumo, a negação do Estado judeu e a incompreensão em relação a sua urgência são um desprezo fulminante à memória judaica repleta de sofrimentos, ao seu presente e ao seu futuro. E, como judeu e jornalista convicto de que se posicionar muitas vezes é necessário (pessoal e profissionalmente), eu digo e comprovo: sim, antissionismo é uma modalidade de antissemitismo muito perversa, que por vezes se banha de falso verniz humanista.
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Conclusão: o racismo (antissemitismo é uma espécie de racismo por motivos étnicos) muitas vezes é tácito, estrutural. O cara nem admite! Mas, sim, ser contra o direito judaico ao seu lar é uma espécie muito atual de antissemitismo. A nova roupagem existe justamente porque hoje temos Israel. O antissemitismo já foi religioso, racial (“científico”) e político. Ele se traveste ao sabor das circunstâncias e dos contextos. O antissionismo, que nega o direito ao próprio lar de uma minoria étnica tão castigada e sofrida, por vezes rotulada ironicamente de apátrida (veja bem!), é antissemitismo. Mesmo que você, contaminado por uma narrativa mainstream que demoniza o Estado judeu, julgue-se um exemplo de progressista e humanista, lamento dizer, mas você está sendo profundamente antissemita. Você é racista.
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Shabat shalom!
Foto da Capa: Muro das Lamentação, em Jerusalém / Wikipedia