Pra começar este texto, devo fazer dois esclarecimentos prévios: o grande roqueiro Charles Master, na verdade, é Charles Master Gerchmann.
1) Pra efeitos artísticos, convenhamos que o “Master” da Tia Janete soa muito melhor que o Gerchmann do Tio Vitor e do meu pai, que eram irmãos. Logo, sou primo-irmão do Charles.
2) Eu o chamo de Caco, e assim o tratarei aqui.
Talvez nem o Caco tenha noção do momento em que mais o enxerguei por completo e senti profundo orgulho dele. Foi no enterro da minha avó Clara, mãe da minha mãe. Vejam bem: não era avó dele, mas minha, porque era avó materna. E lá estava o Caco, comentando das lembranças que tinha da minha avó naqueles tempos tão saudosos da Capão pretérita perfeita.
O Caco tem três anos a menos que eu. Na adolescência, era um piá, porque três anos são uma diferença significativa no início da vida, mas depois ela se escafede, e se estabelece o empate técnico. Na real, eu e o Caco hoje temos a mesma idade. Somos da mesma geração, filhos de irmãos que nos dão muita saudade. E sabemos que os Gerchmann não são mole.
A veia comunicativa é evidente na nossa família paterna. Há uma necessidade de expressão, e a arte e a comunicação são os canais mais diretos. Tornei-me jornalista, o Caco escreveu e interpretou alguns dos clássicos mais definitivos do rock gaúcho, meu irmão é ator e escreve superbem, minha prima psicóloga tem textos ótimos, e o primo fotojornalista Adolfo (que saudade!) se expressava lindamente pelas fotos e pela culinária.
Enfim, penso nos nossos pais e me vem uma tristeza. Meu pai, o Henrique, sonhava com a diplomacia, era extremamente comunicativo, cativava as pessoas, amava Geografia e História. Mas o nosso avô morreu muito cedo. A gurizada, vinda de um shtetl (aldeia judaica) romeno, teve que se virar. O legal é que esses queridos nos repassaram o dom reprimido.
Voltando à história do Caco no enterro da minha avó, percebi ali que aquele antigo gurizinho, transformado num roqueiro transgressor e extremamente talentoso, sempre foi muito doce.
Volta e meia eu sabia de alguns momentos intensos da vida de Caco, que, como as de todos nós, é preenchida de encontros e desencontros, sabores e dissabores, ainda mais no ambiente artístico ou no jornalístico, em que a vaidade e a competição são elementos cotidianos. Sempre torci pra que tudo desse certo.
No fim, sempre dava certo.
Até porque meu primo tem excelente índole. É uma pessoa honesta e franca, e vejo isso como uma qualidade essencial nestes tempos egoístas e cínicos de covardias virtuais.
O Caco é papo reto. E eu entendo esse temperamento. Também sou assim. Mais: valorizo, cativo e me orgulho desse perfil.
O resumo dos Gerchmann é que temos sangue nas veias. Isso é bom e ruim, dependendo do contexto. Mas, no geral, eu gosto. Talvez venha daí também o ato de criar. No enterro da minha avó materna, eu olhei pro Caco e só tive um pensamento: “Que guri bom!” O Caco sempre foi um guri muito bom. E hoje é uma referência essencial na arte que mais amo: o rock’n roll.
Outro dia, o Caco me surpreendeu ao lembrar que fiz uma tatuagem lá num remotíssimo 1981, aos 16 ou 17 anos, homenageando o Grêmio e os Beatles com uma maçã azul. Foi horrível! Eu próprio desenhei, com a mão direita, no braço esquerdo, e ali ficou a cicatriz, hoje estilizada com duas estrelinhas y otras cositas más, porque, tchê, cachorro louco nunca se entrega. Mas ele lembrou da minha origem de amor à música e ao rock, e isso me encheu de orgulho. Me emocionei!
Veja bem, preste atenção, como diria o Rei Roberto: o grande Charles Master se lembrou de que o primo, uns poucos anos mais velho que ele, já era muito roqueiro lá nos primórdios da explosão do rock gaúcho, da qual ele é um dos principais protagonistas. Se servi de mínima referência pra alguma coisa, mesmo que subliminar, que honra! Fiquei envaidecido e talvez só escutando o que ele dizia. Mas o fato é que aquilo me comoveu. E eu repeti: “Que guri querido!” Simples, generoso, doce, amigo, querido e talentoso. Está onde merece.
Dias atrás, me emocionei ao adquirir os ingressos pra eu e pros meus filhos irmos ao grande show de retorno da lenda TNT no Araújo Vianna. Veremos o nosso primo, e o nosso primo já avisou, numa troca de WhatsApp: “Vamos nos divertir muito.”
Espero que haja shows extras, porque sei que os ingressos estão se esgotando. Será já ali no dia 19 de dezembro. Não é pouco. A banda icônica do rock gaúcho vai se reunir depois de duas décadas. Estarão no palco o Charles Master, o Márcio Petracco, o Tchê Gomes, o Paulo Arcari, o João Maldonado e o Fábio Ly.
Quando a banda foi formada, o Caco tinha só 17 anos. Eu tinha 20. Eu via os guris andando pelas ruas de Capão e pensava: o que esses moleques estão tramando? O Felipe Jotz, batera, eu também conhecia desde criança, porque ele era meu vizinho no Edifício Aymoré, e a turma do Aymoré era uma irmandade.
Criado com a sonoridade dos Beatles, dos Incríveis, do Deep Purple, do Rush, do Kiss e do Creedence, eu realmente amava um rock’n roll de sonoridade básica, pura. Foi então que ouvi o Caco e seus amigos. Tchê, o que esses moleques faziam era e continuou sendo maravilhoso. Quanto orgulho do meu primo!
No material promocional do show, são citados Entra Nessa, Cachorro Louco, Ana Banana, Não Sei. Tem uma balada, Nunca mais voltar, que eu adoro, até porque a guitarra me remete muito ao Goerge Harrisson, e aí é covardia. O primeiro disco levava o explosivo nome da banda, em 1987, e realmente o que provocou foi uma explosão de sonoridades que, com um rock simples, de baixo, guitarra e bateria, até pareciam homenagear o punk cujo ano fundacional é o mítico 1977 de uma década antes, também do André Catimba, do Tarciso, do Éder, Tadeu, Iúra, Ancheta, Oberdan, Vitor Hugo, Ladinho, Eurico, Corbo, conjunto de outro tipo que eu e o Caco tanto amamos, também havendo aí uma enorme afinidade. Aliás, eu fiz o livro dos 120 anos tricolores, e ele fez uma música muito a fudê.
Mas falávamos em 1987. Ali já éramos maiores, 20 e poucos anos e, ora vejam só, campeões da América e do Mundo.
E daqui a algumas semanas aqueles guris que perambulavam pelo Centrinho de Capão retornarão ao palco onde tantas histórias eles viveram conosco, incrivelmente ajudando a moldar o rock nacional naquela segunda metade da década em que o país vivia a explosão da volta à democracia. Como diz o texto promocional, o show será “uma celebração da história da banda, do rock gaúcho e da conexão inquebrável entre a TNT e seus fãs”. É bem isso. E tem uma frase que me diz muito: “Quem viveu aqueles anos sabe o impacto da banda na cena musical, e quem vai ao show terá a chance de reviver essa força bruta e contagiante do rock que a TNT sempre representou.”
Como primo-irmão de um dos protagonistas, vou reviver e resgatar muitas emoções ao lado dos meus filhos de 17 e 22 anos, tietando o nosso querido Caco. Não vejo a hora. Como diria o Galvão, “haja coração!” Um beijo, primo! E até mais!
…
Shabat shalom!
Foto da Capa: Charles Master / Divulgação
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