O livro “A Cronologia do Alef Bet” (SlerBooks) está me dando a oportunidade de conversar muito com as pessoas. Na terça-feira, estive na minha eterna escola, o Colégio Israelita Brasileiro (CIB), falando com professores ao lado do meu amigo Nelson Asnis, psicanalista e autor do revelador livro “A síndrome do espectro antissemita” (O Viajante). Tanto para mim quanto para o Nelson e para o excelente âncora, o professor de Filosofia Gustavo Coelho, foi um momento de trocas, como se estivéssemos na mesa de um bar charlando sobre a vida e, em especial, sobre o judaísmo. Registro, aliás, a extrema qualidade desses dois companheiros de bate-papo e também a dos espectadores. O Gustavo é excelente, muito lúcido. Meus filhos foram seus alunos, e eu só comprovei os rasgados elogios que costumam fazer. E o Nelson é amigo de décadas, com quem tenho muitas afinidades. Um luxo, enfim.
Vai aqui um recado pro Gustavo: como não nos conhecíamos pessoalmente, só depois eu me dei conta de que aquela pessoa simpática, inteligente, culta e muito preparada era o professor tão elogiado pelos meus tesouros. O CIB tem esse dom de nos proporcionar professores que marcam as nossas vidas.
Mas, como vivi este momento intenso, resolvi trazer aos leitores da Sler um bate-papo com outro grande psiquiatra e psicanalista e também meu amigo (que loucura ter tantos amigos psicanalistas, hein?!), o querido Abrão Slavutzky. Desde os anos 1950, o Abrãozinho (dessa forma afetiva, ele é chamado pelos vários amigos, porque ele realmente é adorável) viveu de diferentes maneiras o CIB, como aluno, professor e integrante da mantenedora. Nesta conversa, faz um interessante panorama da escola e traça um painel que se inicia na necessidade de o CIB existir.
Abrão: “O colégio é, na minha concepção, a principal instituição de uma comunidade judaica. Esta é a tradição do povo judeu: estudar. E, ainda mais, para os judeus continuarem sendo judeus e conhecerem o que é ser judeu e a História. Então, é preciso ter um Colégio Israelita Brasileiro, no qual não só se estudam todas as matérias, português, matemática, todas, mas também se estuda cultura hebraica e hebraico. Em um passado mais distante, estudava-se o iídiche, também. Então, tenho uma imagem do George Steiner, famoso pensador, crítico literário, que escreveu várias coisas sobre o povo judeu, e uma das coisas que ele escreveu foi que o Todo Poderoso, o Elohim, esse Deus, esse monoteísmo ético que os judeus trazem para o mundo, assemelha-se a um diretor de colégio judaico. É interessante, né? Ele fazia essa relação. E penso que, nessa relação, está a importância da educação. Talmud tem a ver com o verbo lomed (estudar). E de onde vem a tradição de estudar do povo judeu? Desde a história dos 10 Mandamentos dados ao povo judeu, toda a tradição era oral. Então, uma geração passava para a outra. Abrão, Isaac, Jacó, José, depois as tribos. Toda a tradição, toda a história, ela vai sendo transmitida oralmente. A partir da Torá, tem algo escrito, que é o fundamento do judaísmo, mas a grande figura da educação judaica talvez tenha sido alguém esquecido, não pelos rabinos, que é Esdras, que muitos rabinos definem como um novo Moisés. No século VI a.C., Esdras refunda o povo judeu, porque ele vem da Babilônia (onde os judeus tiveram 50 anos de cativeiro) para Israel e cria, ele, que é o líder espiritual enquanto Neemias é o líder político, os estudos duas vezes por semana, quando os judeus vinham ao mercado para trocar suas coisas. Naquela época, faziam-se trocas. Pois Esdras cria a obrigatoriedade de estudar. Então, nós temos uma obrigatoriedade de estudar há 2,5 mil anos. Esse Colégio Israelita, fundado em 1922, tem atrás de si mais de 2 mil anos de tradição. Toda comunidade judaica precisa formar o colégio judaico para transmitir (a cultura).”
Eu: Como foram acontecendo todas as transformações no CIB?
Abrão: “Já sou do tempo do hebraico, mas me lembro de que, no início da década de 1950, ainda se estudava o iídiche. Dizia-se inclusive ‘colégio iídiche’, quando o nome era ‘educação e cultura’. Depois, passa a ser o Ginásio Israelita Brasileiro. Eu comecei a estudar em 1950 na escola, fiz sete anos no ‘educação e cultura’, jardim, primeiro e segundo anos; depois fui para o Ginásio Israelita Brasileiro. Então, tive que sair, porque não havia o ‘científico’ (atual ensino médio) naquela época. Depois, eu voltei, em 1968 e 1969, durante dois anos, eu dei aula de cultura hebraica. Voltei novamente na década de 1980, já tinha vivido em Buenos Aires e feito vários caminhos. Durante dois anos, fiz parte da mantenedora. Mais adiante, fui chamado algumas vezes ao CIB para falar aos professores ou aos alunos, uma vez fui chamado para falar sobre o livro ‘O dever da memória’ (sobre o Gueto de Varsóvia). E onde aprendi sobre o Gueto de Varsóvia para escrever esse livro? Foi no CIB. Impressionei-me muito com todas essas histórias quando era adolescente e tive a oportunidade de conhecer uma das sobreviventes do gueto, isso já em Jerusalém, quando eu tinha 17 anos. Tudo isso me foi criando um vínculo afetivo muito forte, além de cultural. Penso que, no primeiro livro que escrevi, ‘A paixão de ser’, sobre a identidade judaica, muita coisa eu aprendi no CIB e muita coisa eu aprendi no movimento juvenil judaico. Na minha época, o colégio e o movimento juvenil eram coisas bastante separadas. Quando os movimentos juvenis passaram a trabalhar dentro do CIB, pareceu-me muito interessante. Creio que todos os acontecimentos terríveis pelos quais o povo judeu passou repercutiram de diferentes formas dentro do CIB. Eu não estava lá naquela época, nem era nascido, mas me lembro, desde criança, de estudar sobre campos de concentração e campos de extermínio, a questão do nazismo e do antissemitismo em geral. Esses sempre foram temas que marcaram minha inquietude de conhecimento.”
Diante da minha pergunta sobre alguma experiência marcante no CIB que possa ser especificada, Abrãozinho recorda uma época ainda próxima da Segunda Guerra, em que a comunidade judaica era muito fechada. Todos que a vivemos por dentro, com seus temores e preocupações, sabemos que isso foi natural e compreensível, mas o mundo se amplia e areja, sem que percamos a nossa essência identitária. Segue o meu querido amigo:
“Um acontecimento ao qual me parece importante fazer referência, que me ocorreu quando era aluno no meu último ano, foi em 1962. Uma turma escolheu para seu paraninfo um professor de matemática, o Baratojo. E a direção do CIB não o aceitou como paraninfo pelo fato de não ser judeu. Isso foi algo muito tenso e conflituado, porque era o professor de que mais gostávamos. Havíamos tido matemática com ele alguns anos atrás. Era um professor que não pedia para os alunos se levantarem. Adorávamos matemática por causa dele. O fato de a direção ter vetado esse paraninfo nos deixou chocados. Então, decidimos fazer algo muito rebelde. Dissemos que, se tivéssemos de escolher outro paraninfo, escolheríamos Seu Paulo, que era o zelador. Foi uma atitude de confronto com a direção, e a direção nos suspendeu de um churrasco que iria ter. Então, eu disse para a turma que, domingo, ao meio-dia, nos reuniríamos em frente ao colégio. Já que não iríamos ao churrasco do colégio, iríamos a uma churrascaria no bairro Alto Petrópolis. Fui suspenso durante um mês. Foi a única vez que fui suspenso de um colégio, ainda bem, mas eu passei bem esse mês. Os colegas me levavam os cadernos, acompanhei as matérias e ali eu descobri a leitura. Eu li livros sem fim durante esse mês e fui me transformando num apaixonado por livros. A suspensão teve esse ganho, eu sou grato a ela. Não tinha TV nem internet. Tinha rádio, mas a gente lia ouvindo música. Porém, o que quero dizer é que o colégio, depois disso, evoluiu. Nesses anos todos, uma série de questões sobre a identidade judaica foram sendo modificadas. Na minha época, todo mundo era Abrão. Só na minha turma, tinha três Abrão. E tinha também bastante Isaac, Jacob, José, etc. Depois, os nomes deixaram de ser Abrão, Isaac, Jacob e José. Passaram a ser Roberto, Leandro, etc. Isso tem a ver não só com alguma coisa vinculada à assimilação, mas também com algo vinculado à adaptação. Mas o importante é que o CIB segue sendo um grande centro de cultura judaica. Sempre o problema é o que acontece depois que o aluno sai do colégio, como segue o desenvolvimento da cultura judaica. É um problema que, até onde sei, segue sem solução. É difícil ter espaços de estudos judaicos, de debates. Não é que não tenha, mas qual a profundidade? Como se desenvolvem? Revistas judaicas aparecem e desaparecem.”
Abrão aborda a dança como manifestação cultural e de tradição:
“Sobre as danças, das quais participei de forma indireta, porque minhas filhas faziam, a sua introdução foi sensacional. Os festivais, os grupos de dança, trouxeram uma alegria para judeus e não judeus, porque as apresentações ocorriam também fora da comunidade judaica. A música e a dança fazem parte de uma história. As danças hassídicas, Baal Shem Tov. São músicas alegres. É a questão da alegria, que me parece muito importante. Uma das grandes contribuições dos judeus para o mundo é que a gente não só se sentou ao lado dos rios da Babilônia e chorou como Jeremias. James Joyce diz, em Ulisses, que os judeus se sentaram e riram. Há uma tradição judaica da dança e da alegria, mesmo nos momentos mais tristes e sofridos. Por isso, fomos desenvolvendo uma das maiores contribuições judaicas, que é o humor judaico. A alegria e o humor sempre fizeram parte do CIB. A montagem de peças. Olha só a conquista que é hoje no colégio quem chega e entra na biblioteca, aquele lugar muito bonito. Sou apaixonado pela biblioteca do colégio. É um lugar alegre e iluminado. Ter uma biblioteca tão bonita e sendo o ‘povo do livro’, que se vá lá e se estude lá, é uma grande conquista. Tenho muita paixão pelo CIB e curiosidade de ler as histórias. Tem muitas coisas do século XXI que conheço pouco. Uma das que conheço e que quero destacar, porque é uma grande contribuição, foi começar a fazer livros, livros escritos pelos próprios alunos, livros feitos por judeus que escrevem interagindo com os alunos, inventando histórias. Já estive envolvido, acho que em uns três livros. Livro sobre os 95 anos do colégio, o prefácio do livro de uma turma, que foi criando a história, a viagem de um israeli para o Brasil e todas as interações, algo fantástico. Essa coisa de fazer livros no colégio foi uma das que mais me empolgaram. Teve outras grandes criações, mas estou cito essa, que é recente.”
Pergunto sobre mestres do CIB, e Abrãozinho relata intelectuais que o diretor Guilherme Finkelstein levou para lecionar no colégio. Elogia “a formação do colégio, para judeus e não judeus”, que, diz ele, faz jus à caracterização do judeu como “povo do livro”:
“Eu comecei por Esdras e dou um salto para falar sobre os talmudistas. E me refiro tanto ao Talmud de Jerusalém quanto ao Talmud da Babilônia. Uma das questões mais importantes que os talmudistas trouxeram para a educação judaica foi a introdução das perguntas de forma muito intensa. Não que no Tanach não haja perguntas, existem perguntas e respostas em vários momentos do Tanach. Mas, no Talmud, a pergunta passa a ser central. Adquire uma primeira página. Vou dar um exemplo daquele que foi considerado o ‘sábio dos sábios’, e até hoje, depois de 2 mil anos, ainda tem escolas com o seu nome: Hillel. Receber o título de ‘sábio dos sábios’, na história judaica, não é para qualquer um. Foi o único considerado ‘sábio dos sábios’ em toda a história judaica, e olha que teve figuras maravilhosas, como o Maimônides e outros, mas uma das coisas de que Hillel fala são as três perguntas. ‘Se eu não for por mim, quem irá por mim?’, ‘Se eu for apenas por mim, o que será de mim?’ e ‘Se não for agora, quando?’. Em hebraico, essas perguntas ficam ainda mais bonitas, porque elas têm uma musicalidade. Então, cada um precisa aprender a se cuidar; eu tenho que pensar nos demais, na comunidade, na sociedade, no povo, temos que ter gratidão; e não ficar procrastinando, sempre para amanhã, sempre postergando. As perguntas fazem parte da identidade judaica. E o que é a pergunta? A pergunta é a curiosidade. Toda a ciência e todo o desenvolvimento se produzem das perguntas, porque, a partir das perguntas, vêm as respostas, que originam outras perguntas. Freud fez perguntas e respondeu a perguntas por toda a vida e até o fim da vida. E, cada vez que tinha uma resposta diferente, ele escrevia. E a primeira pergunta que ele fez teve influência do Tanach. Teve a ver com a questão do sonho. Ele ficou fascinado pela figura do José, que interpreta sonhos. Só que, evidentemente, ele vai procurar o sentido dos sonhos no final do século XIX, bem distante de José. Freud inverte. Em vez de pensar no futuro, pensa no passado, e esse amor dele pelo passado e a ideia de que o sonho tem a ver com a infância, ou o amor dele pela arqueologia, isso é uma característica da educação judaica. A de que não podemos esquecer o passado. Temos que escutar de onde viemos. Então, essa questão das perguntas é chave, é essencial na educação, na formação de cada um e na formação de pessoas que depois vão se destacar. Muitas vezes, perguntam como a população judaica, sendo 0,02%, pode ter em torno de 20% das premiações do Nobel em diferentes áreas. Ora, é porque há uma tradição de 4 mil anos de estudo, de educação, especialmente a partir de Esdras. E, na educação, há as questões da pergunta e da curiosidade.”
Lindo, não!
Obrigado, Abrãozinho! Obrigado, Nelson! Obrigado, Gustavo!
E obrigado à Morá Ilana, que nos convidou para conversar.
Ah, e, sobretudo, shabat shalom!
Foto da Capa: Acervo do Autor
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